sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Os papiros da desordem

Já não há religião,
pirâmides de respeito,
coleiras de princípios;
culpa, castigo!

Já não há divindades,
atrás das nuvens,
anotando os papiros
da desordem!

As ondas algodoadas
da espuma da revolta,
misturam-se na bruma,
revolvem-se,
resolvem-se,
na praia dos botões
da nossa intimidade!

Inscrição

Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar

Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004)
Livro Sexto (1962)

Acerca do Mar: Diálogo entre Luís Miguel Nava e Cesare Pavese

O mar é profundamente azul e profundamente poético. O azeite não é naturalmente poético mas pode ser, pelo menos, estético. Na sua capacidade de criação, na alquimia mágica da transformação de bagas em tempero, na arte ancestral que se faz com carinho e esmero. E se o azeite não é o alvo preferencial do lírico rabisco, devemos lembrar que é, ainda assim, um petisco. As sensações que inspira de gula, de prazer, de acabamento perfeito, invocam as pequenas subtilezas de que o ser humano é feito. O mar de Cesare Pavese é terreno, concreto, identificável, real… é um mar observado sob uma visão diagonal, mas é fruto tanto da natureza como do engenho humano, e tudo isto encerrado na imagem do oceano. O mar de Luís Miguel Nava, pelo contrário, é um mar não terreal… é irreal e imaginário; é de outra esfera, de outro enquadramento, é – por assim dizer – visto com outros olhos, com outro sentimento. É insondável, intangível. Mais profundo, mais azul talvez. Faz ponte entre o céu e a terra e de volta ao céu outra vez. É absoluto e brutal. Não tem uma gota de humano, é sobrenatural. É o abismo para onde olhamos um dia. É o sublime que nos transforma em ninharia. Perante ele nada se pode, a terra treme e o céu explode. No seu lugar um relâmpago… não um sorriso, ou um beijo, ou mesmo um poema. Nada que venha do homem, nenhuma teoria, nenhum teorema.
De alquimista e artesão a insignificante poeira do chão. Esta foi a viagem que aqui fez o homem, com as dúvidas, os desejos e as paixões que o consomem. Esta foi a relação que eu consegui encontrar, em dois pequenos poemas que afinal não falam do mar.
Raquel Patriarca

DINOSSAURO VERSUS AVES ( a proposito de um artigo de ciência):

Pertenci aos "seres terríveis",
fui gigante lagarto de penas,
sem ser obeso,
era equiparado em peso
a elefante grande... um dinossauro predador!
Tive aspectos os mais incríveis,
apesar de formas amenas,
sob minha pele... ar, em sacos aéreos, em ossos ocos,
embora sem membros tocos,
originei as mais leves aves,
ensinei-as a libertar excesso de calor.
Meus imensos ossos de ar,
invadidos por vitais fluxos aéreos,
explicam minha linhagem diferente,
e minha sobrevida isoladamente;
meu primo americano mais próximo,
geneticamente não teve uma tal sorte,
extinto que foi milhões de anos antes
pela Lei compulsiva da morte!
De resto, sempre que precisava,
conseguia que o ar percorresse o interior
e a intimidade do meu esqueleto,
transfigurando-me por certo
obtendo mais leveza em minhas caçadas,
conquistando espólio...o meu amuleto!
Assumi assim passar testemunho
às aves, ossos pneumáticos,
e vejo-me hoje sob homenagem
apontado como o mais fiel, recente elo,
entre os garbosos "lagartos terríveis"
e as aves da melhor linhagem.


Antonio Pinto Oliveira ( 07-10-2008).