domingo, 12 de outubro de 2008

Do mar e outras coisas...

Ao mar uns querem voltar. Depois de partir. Depois de morrer.

Outros há que já não vêem nele só conchas e coral, navios encalhados e tesoiros encantados. Ouvem o cântico suave das musas, saboreiam-lhe o sal, sentem que são lágrimas de portugal.

A alguns sabe sustentar, a outros deixa navegar, e ainda a tantos engole devagar, que se deixam afogar. No mar...

A uns parece-lhes azeite. Ou algodão doce, esse deleite, que se desfaz, como na boca, contra a areia e os seixos da praia, alisando-os.

No mar, ainda outros querem pôr trovões, e tritões. Uma arma nuclear, quem sabe, ou um castelo para baleias, golfinhos e sereias.

E outros há ainda, que nele se podendo inspirar para o poema cantar, se afastam perdidos no fundo de um abismo onde submergiram. São as atrocidades deste mundo que sucedem sem cessar. A céu aberto, como outrora, ou escondidas sob mil formas na subtileza de um véu que parece esvoaçar como a liberdade. E são os que, perante momentos tão tristes e perversos, chegam a desprezar e esquecer os seus tão amados versos. É pois então que pode parecer que a poesia fica sem sentido. Ou que só existe se gritar a ver se o mundo tantos males consegue abrandar...

Mas eu digo, enquanto eu puder ver o mar, não me importa que me digam se tem baleias ou sereias, ou se as suas ondas são feitas do sangue que escorre das lutas entre troianos e aqueus, e mais um outro qualquer deus. Enquanto eu puder ver o mar, vou sempre sonhar. E posso não saber escrever, mas desenho na minha mente esses versos, a poesia. Que hei de largar nas ondas, quem sabe, um dia.

Elza

Ar

Aqui fica nova tentativa de enquadrar o terrivel elefante:

Ar, aves terriveis.
Origem interior, resto de elefante,
Ossos ocos, aéreos, invadidos... ar

Ar, aves próximo.
Linhagem, primo artigo,
Excesso, calor novo, libertar do elo recente... ar

Ar, aves mais leves.
Percorresse o rio isoladamente,
Penas, pele, penas... ar

O lado oculto das coisas

Alguma falta de tempo à qual se acrescentam trabalho q.b. e uma “pitada” de intranquilidade levam-me a cumprir com este novo desafio da Ana Luísa, de uma forma facilitada.
A leitura do texto de Saramago, que transcrevo a seguir, forneceu-me a solução para o «trabalho de casa».
“o olho humano escondido”! É isso! A poesia acontece como a escuridão acontece – “Não foi para nenhum lugar, a escuridão é simplesmente o outro lado da luz, a sua face secreta”.
E não é também Garcia Lorca que diz “Todas as coisas têm o seu mistério. E a poesia é o mistério de todas as coisas.”?

O outro lado
Como serão as coisas quando não estamos a olhar para elas? Esta pergunta, que cada dia me vem parecendo menos disparatada, fi-la eu muitas vezes em criança, mas só a fazia a mim próprio, não a pais nem professores porque adivinhava que eles sorririam da minha ingenuidade (ou da minha estupidez, segundo alguma opinião mais radical) e me dariam a única resposta que nunca me poderia convencer: “As coisas, quando não olhamos para elas, são iguais ao que parecem quando não estamos a olhar”. Sempre achei que as coisas, quando estavam sozinhas, eram outras coisas. Mais tarde, quando já havia entrado naquele período da adolescência que se caracteriza pela desdenhosa presunção com que julga a infância donde proveio, acreditei ter a resposta definitiva à inquietação metafísica que atormentara os meus tenros anos: pensei que se regulasse uma máquina fotográfica de modo a que ela disparasse automaticamente numa habitação em que não houvesse quaisquer presenças humanas, conseguiria apanhar as coisas desprevenidas, e desta maneira ficar a conhecer o aspecto real que têm. Esqueci-me de que as coisas são mais espertas do que parecem e não se deixam enganar com essa facilidade: elas sabem muito bem que no interior de cada máquina fotográfica há um olho humano escondido… Além disso, ainda que o aparelho, por astúcia, tivesse podido captar a imagem frontal de uma coisa, sempre o outro lado dela ficaria fora do alcance do sistema óptico, mecânico, químico ou digital do registo fotográfico. Aquele lado oculto para onde, no derradeiro instante, ironicamente, a coisa fotografada teria feito passar a sua face secreta, essa irmã gémea da escuridão. Quando numa habitação imersa em total obscuridade acendemos uma luz, a escuridão desaparece. Então não é raro perguntar-nos: “Para onde foi ela?” E a resposta só pode ser uma: “Não foi para nenhum lugar, a escuridão é simplesmente o outro lado da luz, a sua face secreta”. Foi pena que não mo tivessem dito antes, quando eu era criança. Hoje saberia tudo sobre a escuridão e a luz, sobre a luz e a escuridão.

Outubro 7, 2008, 10:26 pm, O Caderno de Saramago.

Desenfurece-me os sentidos

Desenfurece-me os sentidos
Desfaz o meu tempo no teu tempo´
Nessa corda de beleza que nos desune num nó
Entrelaçados no som que nos prende
No ritmo alucinante dos sentidos
Todo o tempo não é tempo
Toda a hora não é hora sem ti
Fujo da paragem súbita do tempo
Neste modo de não ser
A apatia fugidia da dúvida
Essa ladra de verdades
Na indecisão dos desencontros
Das assimetrias cruas que nos esfaqueiam as expectativas
As despedidas forçadas
As horas roubadas no desejo em catadupa
Se não soubesse sabia
Sabia mas não queria saber
Via mas não queira ver
Nessa cegueira ao contrário
Nesse muro desconexo do teu olhar
Só pensar, só fugir
Num murmúrio lento, quase eterno
Quase terno, doce
Desencontrado do amor
Foge-me de ti o sentir
Sente-te a fuga vazia
O começar ao partir
Terminar sem lá ir
Já nada querer ou nada esperar
No cansaço melancólico da dor
Essa forma disforme
Que vai e vem
Lacera, lacera, lacera
Lentamente, lentamente
Uma dor lenta, lenta, lenta
Forte, forte, forte
Fundo, fundo, fundo
DOR
Escadas, cor, luz, fuga, sonho, drama
Essa comédia encoberta da indecisão
Do acaso, do caos, da sorte
A vida que há na morte
A descorrer os ciclos
Tudo o que não sabemos
A finitude , rude , lenta
Bela, única, nua, crua
Dura
A dura finitude que nos abraça
Abraça-me
Abraça-me
A fragilidade física dos corpos
A psicologia invertida esculpida
Despida de cor
Tenho as respostas dobradas na língua
Engulo as respostas dobradas e trinco-as
Minto-as
Finjo-as
Procuro-as no tempo, no espaço, no teu retrato
Nos ponteiros estagnados
Nas lágrimas paradas
Sem, sem, sem
Nadas e nadas e nadas.
Tens tudo em ti.

A desconexa rua do amor

A desconexa rua do amor
Só cor grafitada nos caixotes
As casas incertas apoiadas umas nas outras
Despoluídas
Apaixonadas pelo nada de si mesmos
As torres altas da solidão
As escadas tortas da incerteza
Os pilares do medo e do ciúme
As telhas de vidro transparentes
Bonitas, por onde passa o sol
O brilho que sai de todas as coisas
Que espreita em todas as frinchas
As mantas de promessas espalhadas pelas ruas
Coloridas em retalhos de sonho
As nuvens misturadas nas paredes
A beleza inocente dos sentidos
A crueza dos corpos enlaçados
O infinito nos nossos olhos
O infinito nos nossos corpos
A chuva quieta dos beijos
Cobre toda a rua
Num macio de toque
Com sabor a pele
Ponto.
Pronto
Foi-se o ponto
Fica a vírgula sozinha
As reticências esquecidas que não podem contar tudo
O travessão mudo
Dois pontos
Ou um ponto basta?
Interrogo a incerteza do ponto de interrogação
Que sabe mais do que pergunta
Exclamo com ponto
Exclamo sem ponto
Falta-me pontuação
Faltam-me pausas contigo
Pontos contigo
Reticências contigo
Dois pontos contigo
Ponto de interrogação
De exclamação
Em ti, sobre ti, por ti, sob ti
A única pontuação que existe é o beijo
O teu
Ponto
Afinal o que perdeste se tens tudo em ti , no mundo?
Perdeste a cor mas se as há tantas
Perdeste a dor …tanta, tanta
Manta mantra
Mente santa em santidade
Desconheces a verdade nas mentiras iras iras
Que descobres iras iras
Dos zangados gados bravos
Despastados ados mados tados sados
Tristes ristes dos passados
Em futuros uros tristes
Muros vistes sem meados
Fados dados em metades
Ides ides iras iras
Vinde vinde por quem vindes
Foge roge sem leão
Não tem piada este nada
Do sentir a solidão dão de graça as palavras
Já zangadas deste caos
Fogem todas pela folha
Em recolha de protesto
Já não voltam só brancura ficará neste papel
Mas só me apetece o non sense
De brincar e me zangar
Com as palavras e sons
Iras iras das palavras
Avras lavras só se enterram
Erram erram já com medo
De nunca acabar a frase
Nesta luta luta luta
Infindável a findar
Ável ável ar e ar
Durmo que me vou calar ar ar
As palavras já a rir
Avras avras a sorrir
Durmo urmo sonho onho
resgata os meus sentidos na tua dor
na escolha impune da liberdade
intrometida no arbítrio
quantas semanas tem a dor?
Que espaço é a tua ausência?
O que sente o que não pensa?
Que amor é este que consome?
Tivesse cor a inconsistência
Era magia ser tão frágil
Cortar cortinas mascaradas
Do próprio rosto reparadas
Disfarce eterno desta lucidez
Que em vão desgasta a minha tez
Rugando em rugas meu pensar
Descortinando entre o olhar
A lenta marca deste tempo
Que nos abraça o desalento
Nos amordaça em impotência
Nos pôs nas costas a ausência
Nos despe de vaidade e sonho

Música

Essa torrente de som que me esmaga ressuscita, inspira
Me faz voar para sítios longe e dentro
Experimento as dores longínquas de quem canta
E respiro as notas soltas na libertação desmontada dos sentidos
Esse rio de desejo que se esconde na expiração
Terrena de suspiro
Danço no tom sem saber as derivações
Do teu amor nas equações refeitas de saudade
Na verdade com que ouço a etérea frequência
Que me estremece o cérebro e a demência embotada do amor
Esse falso profeta, mentiroso compulsivo de promessa
A meta falsa da expectativa inesperada
O simples presente da musica
A simples realidade dos sons invisíveis
Da transparente onda que me atravessa
Sem pressa neste deleite encorpado do meu i-pod
Tirem-me as cordas das mãos da sociedade do prazer
Esse ladrão de impulsos
Na desagregação em escada do sentir
Esse poço de cor, um corrimão de emoções
Dêem-me música e beijos
Sem pão nem água
Só pele e osso
Sons e notas
A voz quente e a batida de fora que se confunde
Dentro com a minha máquina de sons
Essa bomba no peito
Que injecta sangue em som e transforma ar em vida
E vida em marcha
E marcha em abraço
E abraço em palavra
E palavra em sopro
Sopro em flor
Flor em beijo
Beijo em perfume
Perfume em chama
Chama em poema
Poema em amor
Amor em gesto
Gesto em luta
Luta em sangue
Até começar tudo de novo
Sangue em som
Som em ar
Ar em vida.
O coração.
Desdigo a tristeza e a melancolia nos sorrisos doces
Em que o tempo não é tempo
O espaço não é espaço
E as pessoas são só vultos andantes sem cor
O estranho local onde a solidão vive
Apedrejada em mares de cores difusas
As almas confusas que se objectivam na sua nudez
Na perspicácia ténue dos sentidos
O entorpecer lento do desdizer dos corpos
Esses mortos vivos despojados de stress
Enraizados na alegria da cegueira
Da tonteira do vinho tinto misturado com as histórias
As memórias que contamos
Inventamos o passado em repentes de surpresa
Sem mesa
Sem penas
Despesas que não pagam as contas da mente
A podre carne enfeitada de prata
Sem nada
Só a estranha face que nos une na nossa humanidade
As emoções
esqueço que estou doente
a nossa física, frágil e injusta
numa incompreensibilidade desatenta
a alquimia incompleta da existência
essa forma vã e lenta que contém a incompletude
na macieza dos dias
nas rotinas doces, sadias
no incorrer da alegria sobre o teu cabelo
no sabor ténue do medo
esse ladrão de loucura
que nos gela na postura
e nos refreia o desejo
não sei escrever o teu nome
não tenho letras para ti
que tanto me roubas beijos
como me afastas
Esqueço que estou doente
Doente de não te ter
Nunca mais poder roubar
O teu sorriso no meu
Esquecer a pele, o desejo
Esquecer as voltas da mente
Em que meu cérebro te sente
E meu coração te pensa
Sem descobrir que o amor
é uma espécie de ofensa
que oferecemos a nós próprios
num procurar de abraço
luta enlutada sem passo
sem teu amor me desfaço
desaprendendo a saudade
de já não ser quem eu era
de não voar na paixão
essa eterna quimera
que nos ilude no nada
de tudo ter, tudo rir
tudo sentir e voar
provar de tudo, sonhar
ser tudo em ti sem pensar
sentir só até parar
nesse segundo em prazer
jurar nunca te perder
no espasmo mútuo do ter.
arde-me o ar que respiro quando te vejo
um fogo fátuo perdido
desliza indeciso sem vontade
a obsessão entranhada do desejo
essa seta directa em velocidade
sem vontade que possa parar
a justa força dos sentidos
desdobro-me na tua cor
em dor sadia de vida
em vida solta levitante
de incertezes calmas apertadas
contra o peito acelerado
no instante alvoraçado da espera
do teu beijo
a chegada
a morada certa até não ser
todo o tempo vão até só ter
uma incerteza que é tão grande
que me dobra a alma
num levante
o coração liso, já sem sangue
jaz deitado em terra
sem suspiro
sem desejo
quieto da cor da secura
sem forma nem textura

rio

dá-me entretanto nesses segundos de paz a tua mão
foge dessa prisão que te arrasta
desarrasta e desgasta
mutatis mutandis
revira, desvira e foge
desdobra, descalça, devora e destrói
desenlaça, desfaz
desdói , destrapaça
desengata
desmonta
desliga
desentende-te
desatende-te
desencontra-te
desmonta-te
desconecta
despromete
agora lentamente abraça-te até seres um uno.
Religa
Refaz
Rediz
Retenta
Repara
Reluz
Remete
Remata
Relata
Revive
Relembra
Remembra
Recusa
Reamua
Recua
Relua
Repente
Resente
Remente
Reza
Rema
Rasga
Recresce
Reconstrói
Redói
Remonta
Recria
Repete
Rerri
Relê.

poesia ao contrário

Fujo. Recebo. Dou de repente o que recebi. Sem culpa.
Na novidade limpa do amanhã.
Hoje queria receber rosas. Abraçá-las como se a sua beleza se fundisse a mim, impregnada do seu cheiro e da tua cor.
Cortem as amarras do meu pensamento que me limita e me amordaça.
Rompo sem sentido a narrativa.
Que queres escrever enquanto pensas?
Que violência trazes já em ti?

Aves de ar

Em artigo, ossos de ar ou penas leves
São restos de linhagem mais aéreos,
Do céu próximo ar, oco invadido
Que mais leves que penas não o digo.

Em aves novo ar qual elefante
Sem peso ou primo próximo ou distante
Mais ar para penas leves. Libertar
as aves de interior feito de ar.

E o resto percorresse o rio em pele
Porque ossos são ar isoladamente
E em ar terríveis elos da origem

Em ar o mais leve ar e mais recente!
Que eu resto para pedir e libertar
As aves de interior feito de ar.

Mari Inês Beires

Pensava que ja tinha conseguido por aqui o segundo trabalho de casa, mas pelos vistos, so deu agora! enfim, mais vale tarde que nunca!

O Mar - Analogia Dramática

A propósito do verso " O mar, em seu lugar... pôr um relâmpago"


Oh mar que és tão leviano,
que na areia te deleitas,
outras vezes tigre, desumano,
orgias de horror não rejeitas.

Usas a morte como amante,
acalmando o teu desespero,
sei que és torpe, arrogante,
- porque te olham com esmero?

Tens encanto, és magnificente,
e tão soturno ficas ao luar,
estímulo de paixão, sede de amar.

Por vezes és gélido, e maquiavélico,
temo que alguém se te compare,
se exceda, transfigure em ti, doce mar!

(APO / psd. António Luíz : "Vida - Paixão e Tormento" (2008))

O Sublime em Cesare Pavese e Luís Miguel Nava

“I dwell in possibility -
A fairer House than Prose"
–Emily Dickinson



Este exercício pretende mostrar os pontos de contacto e união entre dois excertos de textos de Cesare Pavese e Luís Miguel Nava. A frase de Pavese “A poesia começa quando um idiota diz a propósito do mar, parece azeite” manifesta uma reflexão sobre o que é de facto a poesia. Pavese serve-se do exagero e da hipérbole. A frase choca pela força do exagero, falamos de uma metáfora que exige sentido de abstracção. O sentido de novidade e de liberdade de Pavese nesta frase manifesta-se sobretudo em contestar/quebrar todos os antigos estereótipos do mar bonança/paz/tranquilidade/ serenidade/ imensidão, lugares comum recorrentes e fáceis de imaginar. É relativamente fácil colocar no mesmo verso as palavras “mar” e “imensidão”.
Pavese diz “Não é, de facto, uma descrição exacta de um mar bonançoso, mas o prazer de ter descoberto a semelhança, a exactidão de um liame misterioso, a necessidade de se gritar aos quatro ventos que de tal nos apercebemos”.
O sublime, o exagero, a ruptura e o sentido de novidade reflecte-se também em Luís Miguel Nave: “O mar / no seu lugar pôr um relâmpago”:
O “sublime” está aqui novamente presente, está em causa uma escala difícil de visualizar, mas cuja imagem é esplêndida de tão forte “o mar / no seu lugar pôr um relâmpago” – Os efeitos visuais que nos chegam são de uma grande força, a luz de um relâmpago num total abismo, um enorme clarão. O absurdo / O Gigantesco fazendo lembrar imagens míticas do Velho Testamento.
Tanto em Pavese, como em Luís Miguel Nava o sublime está presente. Nos dois autores transparece não só o sentido de ruptura, de novidade, de liberdade de espírito mas também a ideia de que nada pode ficar de fora na poesia. Tal como refere Emily Dickinson, a poesia é possibilidade, “uma casa mais justa que a prosa”.


Nuno Brito