terça-feira, 21 de outubro de 2008

Balacete da semana

Que semana!
O chefe a pedir tudo para ontem. Os miúdos doentes. A Joana irrascível : leva- os tu ao Colégio! Não vês que vou ficar com o bébé? Não posso fazer tudo! Não poderias deixar o jornal? (até disse no condicional, só para me arreliar). Ajuda!
Bolas, nunca mais era sábado.
Bendita saída de amigos. Bendita liberdade.
Sorte amanhã haver futebol, se não eu dava em doido.

-João, assiste! Estás na lua? Já pareces a minha mulher, sempre a pensar no Além.Perdemos esta vasa por tua causa, daqui a pouco perdemos o jogo.Concentra-te, homem! Não me digas que hoje nem na sueca tenho sorte. Tive uma semana carregadinha de trabalho, e sai-me este destrambelhado para estragar também o serão. Quando é de azar, é de azar, pô.

Estou a ver. Nem na sueca tenho sorte. O Alfredo também está com problemas em casa, e vem cá descarregar. É tudo muito bonito, mas os putos crescem, o dinheiro falta, o trabalho sobra, e nós é que aguentamos.
Amanhã, pelo sim pelo não, vou à bola. Se o Porto perde, ah caramba, que se o Porto perde outra vez então é que eu destilo a raiva.
Pelo Porto e por mim.

M.Teresa Ribeiro

Oh mar !

Lago do azeite de deuses ou do fogo dos infernos,
Com o som calmo de suas ondas ou o ribombar das suas investidas,
O mar conduz- nos do nascer à eternidade.

Oh mar!

Quantos Homens se perderam nas sereias que carregas,
Quantas donzelas cairam nos braços de teu amor ?
Tens melodias divinas, raios de prata, ritmo extasiante.
Mas sabes também ser duro,rugindo de raiva e tudo levando.

Oh mar!

Sem ti o mundo parava
O lápis quebrava
A musa fugia

Fica, oh mar!

Ainda que o Homem te destrua,
Não vás para longe,

Oh mar!

Intrusa

Mal entrou, o ar encheu-se de um forte cheiro a volúpia que confundiu o religioso aroma dos nossos cachimbos. Violentamente, a pacatez morna do clube foi sacudida pelo estouvamento atrevido e delicioso da sua voz. Foram poucas as palavras, mas todas deixaram adivinhar uma vida sem morada certa, com errâncias inesgotáveis pelo sentir. O andar firme, os gestos desleixados, o vestido que mais parecia uma segunda pele e que despertaria inveja a um qualquer olhar feminino, não deixaram nenhum de nós indiferente. Diria mais. Incendiaram os mais adormecidos desejos. Provocaram as mais disfarçadas intumescências. Profanaram os mais puros sentires. Que destino lhe (nos) estaria reservado?

CARTA A UM AMIGO

Porto, 21 de Outubro de 2008
Meu Querido Amigo,

Fico-te muito grata pela confiança que em mim depositaste: abriste-me os alçapões da tua alma e entreabriste-me o universo das tuas preocupações.
Não sei se alguma vez pensaste nisto, mas eu julgo que a partilha harmoniosa dos corpos depende, essencialmente, do verdadeiro amor mútuo. Quando há, no nosso quotidiano, a necessidade de não facultar ao outro as ilhas da nossa alma, isso pode significar o crescimento da distância entre os que se amam. É verdade que o tempo inscreve nas almas dos amantes a cor da monotonia e as suas resistências. E que, se se não estiver atento, provoca erosão nos sentimentos como o vento sibilino nas rochas mais duras. O tempo não é, todavia, o maior carrasco do amor e das relações interpessoais. As pessoas escondem debaixo do amor incompreen¬sões e egoísmos que não sabem controlar. E vivem atormentadas e atormentam os que amam, porque não conseguem superar esses pequenos nadas que se vão agigantando, dia após dia, a infernizar a sua vida e a dos outros. Com o medo de perderem a partilha, engavinham-se no outro e não o deixam respirar em plena liberdade. Sufocado, o outro começa a criar a distância, e o silêncio cresce. E, ao amor, as palavras são importantes! A linguagem não transparece o amor na sua essencialidade, mas está lá, bem no seu interior: nos gestos, no olhar, nas mãos, nos lábios, nos corpos acesos, linguagens que dizem, tacitamente, os sentimentos mais profundos e os mais humanos.
Nós, as mulheres, entendemos o amor como uma contínua paixão. Não o compreendemos senão como constante ardor do corpo e da alma. Não entendemos que a paixão seja efémera devido à sua intensidade e ao desgaste que provoca. A paixão não conhece as fronteiras do tempo. A paixão confunde o dia e a noite. Não é má, a paixão! A paixão é boa. Mas não há espírito nem corpo que comporte a paixão ao longo de toda a vida. A paixão oferece-nos a morte múltipla, muitas vezes. A paixão não dá espaço para viver, sossegadamente. O sossego e a calma são-nos oferecidos pelo amor. Porque o amor é a paz. E os homens precisam de paz interior para uma relação estável, para a placidez do espírito. O amor contém dentro de si a vida, o companheirismo, a fraternidade, a partilha autêntica e desinteressada. O calor dos corpos é tão-só um complemento desse estado de partilha mútua, que possibilita o entrelaçamento do espírito e do corpo, para um crescimento sereno do par amoroso.
Às vezes, os homens esquecem-se também da paixão por dentro do amor. E correm desenfreadamente por outras paixões, efémeras, que, dizem, não interferem no amor que partilham. Esse, crêem, foi o escolhido e, por isso, eterniza-se por ele mesmo, não precisa de ser alimentado. Mas a paixão corrompe o amor e estilhaça o bem-estar, a serenidade que a vivência do amor exige constantemente. O amor precisa de todo o espaço espiritual dos amantes. Exige deles uma verdadeira partilha exclusiva.
Caro amigo, não foi toda esta filosofia que me pediste. Mas, se calhar, eu não sou capaz de responder concretamente às tuas angústias e às tuas preocupações. O amor é como o respirar: cada um tem de saber dedilhá-lo à sua maneira. A vida depende de ambos. Por isso, cada um tem de encontrar as soluções que melhor se adaptam ao seu caso concreto. O médico não cura ninguém. Propõe caminhos que o paciente percorrerá ou não. A cura está sempre dentro de nós. O teu caso exige uma grande reflexão a dois. A harmonia tem de surgir de vós mesmos. Se não forem capazes dessa harmonia, não valerá a pena caminharem para o caos relacional. É bem melhor que cada um de vós saiba encontrar a sua harmonia, mesmo que implique a separação e a busca subsequente da harmonia individual.
Certa de que encontrarás a melhor das soluções, deixo-te um solidário abraço de muita amizade, e fico à tua inteira disposição.
Francisca
(José Almeida da Silva)

Excreção de um mundo líquido.

Excreção de um mundo líquido.
Somos apenas o que fica depois da escorra.
Matéria senil
Massa decomposta
Expulsa pela contracção
de um ventre higiénico.
Um grito doloroso
solta-se
das entranhas revoltas
numa reacção contra-luz.
E uma atracção fatal surge
por uma gota de água
escorrendo dum espaço aberto
capaz de abeberar a angústia
dum corpo
quase dilacerado.

Nunca te direi ... Adeus!

Esta noite, sonhei contigo. Estávamos de mãos dadas e, apesar da irrealidade do lugar, sem dimensão, nem tempo, eu distinguia, claramente, todos os traços do teu rosto.
Sobre nós, o céu parecia uma imensa árvore, densa e escura, pontilhada de estrelas brancas, cintilantes e tão próximas que, se eu quisesse, poderia tocar-lhes, prendê-las entre os meus dedos e deixar o seu brilho enfeitar o meu destino.

Foi numa noite assim, vestida de negro e de prata e já perdida na teia que o tempo, incansável, tece, que comparaste as estrelas a incontáveis grãos de luz e nós, enquanto seres mortais, a grãos de pó que o vento, um dia, levará consigo.
Falaste-me depois, pela primeira vez, da fragilidade da vida e de como é tudo tão efémero, tão transitório que, o que pensamos ter, não chega, na verdade, a ser nosso.
Não somos donos de nada, não possuímos ninguém e, quando o fim se aproxima, tudo desaparece e, connosco, só fica o Amor. O que fomos capaz de dar e, talvez também, o que, em troca, recebemos.

No jardim, cresciam dúzias de rosas, de caule esguio e pétalas de veludo, que enchiam de perfume e de encanto, a tarde serena e quente. Dístraída, desfolhei uma que se abria púrpura e exuberante à luz incandescente, mas já cansada, do sol dormente e tu, com esse teu jeito de menino que nunca deixaste de ser, disseste-me que nada se destrói na Natureza, sem perturbar o equilíbrio do Universo, tão forte, tão íntima, é a ligação entre tudo o que existe.
Não sei se, então, terei compreendido bem o sentido das tuas palavras, mas, nessa noite, adormeci, já suspensa, entre a incipiente consciência da delicada e perfeita harmonia da Criação e a noção pungente da minha fragilidade e da força destruidora que essa mesma fragilidade escondia .
Tinhas uns olhos lindos, que os óculos esbatiam, mas que mudavam de cor, não sei se conforme a maior ou menor intensidade da luz, se conforme o teu estado de espírito ou se, porque eram, simplesmente, assim .
Às vezes eram castanho-esverdeado, outras vezes, de um verde profundo e aveludado, como as folhas das árvores nas madrugadas macias e serenas, de Verão, outras ainda, de um castanho tão claro e transparente que pareciam âmbar. Esta era uma nova cor que eu tinha aprendido a conhecer e a palavra que a designava, parecia-me tão bonita e harmoniosa como essa tonalidade em si.
Um dia, perguntei-te de que cor eram os teus olhos.
Meio-divertido, meio-surpreendido com a pergunta, disseste que os teus olhos eram da cor que eu os via, como, aliás, tudo à minha volta. Explicaste-me que, pela força das minhas emoções, com a minha alegria luminosa e radiante, com a minha tristeza sombria e gelada, assim eu coloria ou escurecia cada um dos meus dias. Era como se, ao projectar-me em tudo ao meu redor, eu tivesse, sem saber, o poder de recriar o mundo, embelezando-o ou desfigurando-o, o poder supremo de pintar a minha vida da cor que eu escolhesse, da cor que eu mais gostasse!
E, nessa noite, adormeci feliz, cheia de esperança num mundo que eu iria pintar de azul, verde, branco e amarelo. E de todas as outras mil cores possíveis!

Muitas vezes, perdida no escuro, afogada nos velhos medos e pesadelos ancestrais que já nascem connosco, eu chorava baixinho e sufocava, na almofada, o terror, sem nome e sem tamanho, de te perder! Porque perder-te, seria o fim, trágico e definitivo, do meu pequeno mundo de afectos e seria perder-me!
Uma noite, pressentindo-me a solidão e as lágrimas, abraçaste-me e prometeste que nunca me deixarias enquanto eu não fosse suficientemente forte para prosseguir sem ti! Foste ousado na promessa que não sabias se irias cumprir, mas , eu suspirei de alívio e, como sempre, descansei em ti.
E, quando, por fim, adormeci, aconchegada na ternura morna dos teus braços, o meu coração batia, já, ao ritmo sereno do teu, de novo compassado, seguro, confiante.
Ensinaste-me sempre a ver o Mundo como um filme fantástico, de largos horizontes e em deslumbrante colorido. Talvez por isso, nunca tive da vida, das pessoas, dos sentimentos, uma imagem linear, cinzenta e entediante .

Um dia, ao entardecer, quando o céu e a terra se fundem, na labareda incandescente e lasciva do sol poente, perguntei-te como seria o Amor se tivesse cor . Eu imaginava--o de um cor-de-rosa doce, delicado, encantadoramente romântico, mas tu pensavas que deveria ser vermelho vivo, forte, fulgurante, porque esse é um sentimento feito de pura emoção, intenso, impetuoso, avassalador e as cores suaves não lhe ficam bem .
No Amor, dizias, é sim ou não, é ganhar ou perder, é tudo ou nada, sem meias-tintas, sem meias-palavras, sem meios-termos!
E, nessa noite, adormeci agitada e um pouco ansiosa. Assustava-me a possibilidade de, um dia, amar e ser amada assim. Inteiramente, apaixonadamente, irremediavelmente!
Hoje, muitos anos passados, tantos, que já lhes perdi a conta, acredito que, partilhar com alguém um Amor com essa verdade, essa entrega, essa força arrasadora, possa ser, só por si, a justificação de toda uma existência!

Contigo, aprendi a amar a música e, a encontrar nela, uma preciosa companhia nas horas de solidão, uma amiga fiel e sempre presente nos bons e nos maus momentos .
E, a teu lado chorei com Chopin, sorri com Mozart, enterneci-me com Puccini, emocionei-me com Beethoven e rezei com Bach!

Despertaste, em mim, desde muito cedo, o gosto pela leitura e, pelas tuas mãos, li algumas das obras mais marcantes da Literatura que, depois, comentávamos calorosamente. Tu, com um sorriso e o argumento certo. Eu, arrebatada e muito ciosa da minha opinião!
E, junto de ti, repousei com Antero, na Mão direita de Deus, calcorreei serras com Torga, amei perdidamente com Florbela, encantei-me com a profundidade de Somerset, assombrei-me com a magia de Mann e apaixonei-me, definitivamente, por Eça!
Através dos livros, eu ia descobrindo mundos novos, enquanto criava outros, nas histórias que inventava, que tu lias, orgulhoso, mas que eu, depois, sem tu saberes, rasgava.
Porque, tudo o que escrevo parece-me sempre tão tosco, tão incompleto, tão inútil ! Porque, nunca fui capaz de transpor para o papel, nem os pensamentos que brotam rápidos, em torrente incontida, do meu cérebro, nem os sentimentos, de choro e de riso, que correm à solta, em doido tropel, no meu coração!
Como acontece agora, que escrevo para ti, enquanto vasculho lembranças nos baús desbotados e poeirentos do Passado.

Contigo, surpreendi-me com os traços puros, clássicos, belíssimos de Botticelli, deslumbrei-me com a beleza voluptuosa, cheia de cor e de luz de Renoir e comovi-me com a delicadeza intimista, deliciosamente cândida e sensual de Fragonard.

Mas, também de ti vem esta atracção irresistível pelo mar, esta necessidade, quase primária, de o ver, de lhe sentir o cheiro a sal e a algas, de lhe escutar o ribombar assustador das vagas alterosas, em furioso turbilhão, quando está revolto, ou o marulhar terno, quase erótico, das ondas mansas a sussurrarem inconfessáveis segredos e a espreguiçarem-se, lânguidas, na areia húmida e lisa .
E, frente a essa massa de água, imensa, translúcida, magnífica, bordada de espuma e salpicada de luz, aprendi, contigo, a encontrar alento para o meu cansaço, paz para a minha ansiedade, inspiração para a minha vida!

De ti, ficou-me o desprezo pela hipocrisia, pela intolerância, pela mentira cruel, pela maldadezinha canalha, pela vingança aviltante, pelo queixume gratuito!
Em ti, encontrei sempre uma espantosa humanidade, um sentido de humor subtil, mas certeiro, uma inteligência viva, flexível, uma sensibilidade fina, requintada e o respeito discreto, compassivo, generoso pelos outros. Pelas dificuldades, pelas aflições, pelo sofrimento dos outros!
E, é por tudo isso que tantas vezes, como agora, é para ti que o meu pensamento voa, a minha alma se ajoelha, reverente, perante a tua e eu te agradeço e te bendigo! Tu foste, em cada um dos meus dias, a minha âncora, o meu porto de abrigo, a luz-guia dos meus passos ! Antes, agora, sempre!
Não foste um santo, um filósofo ou um poeta. Ou, talvez tenhas sido tudo isso, sem ninguém saber. Nem mesmo tu!

Esta noite sonhei contigo e fomos juntos, lá para onde só a alma e a memória podem ir, onde somos livres, o céu é sempre azul, as flores não perdem o encanto, nem o perfume e tudo tem a cor cristalina do teu espírito!

Nunca nos dissemos Adeus!
Adeus, diz-se quando o Amor acaba e o fim é, então, inevitável, definitivo, irreparável!
Nunca se diz Adeus, quando o laço visceral, feito de sangue e de afecto, permanece intacto e tu continuas comigo, pois, sobre o coração e o pensamento, ninguém, nada, nem mesmo a morte, tem qualquer poder !
Não se diz Adeus, quando sabemos que, em termos de Eternidade, vinte, trinta ou quarenta anos de separação, não são mais do que dois, três ou quatro segundos deste tempo que contamos!
Não se diz Adeus, quando o rasto claro, límpido, brilhante da tua luz é ainda o caminho que percorro!

E, porque uma noite destas talvez volte a sonhar contigo, agora e uma vez mais, digo-te apenas, até já, até logo, até sempre, meu querido!
Dia 19 de Março dos anos que já vivi e dos que me restam viver!


Maria Celeste Carvalho

Ponto de Partida num Parágrafo

Ponto de Partida num Parágrafo I
No enlaço dos teus braços morrem pudores e recatos breves, que deslizam à descoberta da curva da orelha, onde sussurro desejos a fugir pelo pescoço, peito e pele num percurso de pêlos, navegado rente aos ossos, até respirar o teu sexo feito mastro emergindo dum mar salgado a apelar por descobertas e lugares profundos, onde desaguo num desalinho de gritos rubros, na certeza de que cheguei ao para-sempre e aqui vamos experimentar felicidades várias, todas elas eternas, perfeitas, nossas.

Ponto de Partida num Parágrafo II
Morre a força de cansaço nos teus braços miúdos onde enlaço paraísos de desejo e mundos perfeitos para onde iremos fugir depois de te foder, depois de navegar os seios que imagino serem mamas tumultuosas de mamilos hasteados a apontar a ruína que se segue, depois de me afundar entre as tuas coxas e desaguar as fragilidades do meu querer na cona de seda que me promete um futuro em que não acredito, mas que espero um dia experimentar, nem que seja para de novo partir e me perder de mim.

Ponto de Partida num Parágrafo III
Nos teus braços morreríamos, mas o amor é fodido e lá fora os outros e o mundo invejam este paraíso de onde tenho de partir, para regressar ao inferno e voltar e, de novo sentir o futuro no teu sexo, atravessar o teu corpo e experimentar felicidades virgens, aquecer a alma nas tuas coxas, transpirar a liquidez do desejo até me derreter no exílio da tua pele e por fim regressar ao ponto onde decidi partir e te perder.

Ponto de Partida num Parágrafo IV
Morri na lembrança que tenho de ti e nenhuma espécie de ressurreição me fará regressar a esse mundo onde permites que se arquitectem atropelos ao amor puro e se desenhem destinos onde os nossos corpos não se enlaçam, mesmo quando continuam a produzir torrentes de lava interior emergente, invocando incandescências que são uma ameaça à perfeição das leis putrefactas e cobardes de quem não sabe sequer o que é o amor.

bilhete

quero outra vez desculpar-me. esqueço que os preliminares devem durar todas as horas de todos os dias. não é que não te tenha carinho. só não sei como to hei-de entregar. estou tenso e cobro-te aquilo que não devo. sempre foste o melhor desta minha vida confusa e cinzenta e preciso de sentir que ainda és minha. quero ser controlado, seguro, sentir-me realizado. quero ser quem mereces. a maior parte dos dias sinto-me cansado, incompleto, abandonado, ridículo. não desisti mas já não tenho expectativas. já reparaste que nos transformámos em lugares comuns? não tem importância. continuo a amar-te como antes. talvez não como antes, mas o teu ventre é ainda a minha verdadeira casa. logo chego tarde. janta e não esperes por mim.

R. Patriarca

Prolongamento corporal

Dentro da esculpida natureza
Nasce a expressão primeira:
A sensação
Envolta numa decoração única
Que emana uma climatologia
Típica
De quem observa o mundo cromático.

Prolongamento corporal

Ânsia de imensidão
Sede de intensidade
Deixo-te no silêncio desta paisagem
Secreta pelo timbre
Receoso e próximo
Dos tímpanos audíveis.
Inclina-te mais um pouco
Nesta intensidade naturalmente viva.
Projectando-se no ilimitado.

Prolongamento corporal

Mergulho no meio das cores
Percorrendo o mais pequeno espaço
Mesmo incolor que seja.
Crio um espaço legível
Onde a sintaxe é puro fenómeno
Ardente.

Prolongamento corporal

Olhares em êxtase
Corpo em posição de guia
Toques que comunicam
A essência e incidência da luz.
Sol e lua
Corpos de luz
Que vibram no sentido
Mais precioso da penetração do campo visual.

Prolongamento corporal

És pura luz
clara-escura de uma ilusão viva.

É como um fio de uma teia de aranha

É como um fio de uma teia de aranha
Fino, frágil, quase imperceptível
A que te agarras inconscientemente
E eu quieta, observo-te, impotente.
Observo-te com atenção e é incrível
O corpo quase inerte ali deitado
E eu a ver-te, sentada a teu lado.
É como um fio de uma teia de aranha
Quase flutuas, magro, alvo e transparente
A tua respiração é tão leve e tão fina
E transporto-me ao passado, de repente
Sou de novo a tua menina.
Bonecas, guarda-chuvas de chocolate,
Viagens, loucura, comboios eléctricos,
Bicicletas, estórias, uma sinfonia
E de volta ao presente eu sufoco
Nesta dor de te perder, nesta agonia.
O lençol imperceptível sobe e desce
A cada vez mais ténue e esbatido
E a frágil teia que o meu imaginário tece
Flutua como o vento, cresce, cresce
E o medo que me esmaga e enlouquece
Que eu não quero que tudo fique partido.
Mas é tão frágil e uma lágrima já sinto a escorrer
Sei que essas pausas vão ficando mais espaçadas
Teu coração quase não sinto a bater.
Fecho os olhos e procuro te agarrar
Mas a teia é tão frágil, vai quebrar!
E quando te abraço e sussurro bem do fundo:
Que te adoro, Pai, fica comigo…
Mas o fio da teia está partido
E tu, Pai, já não és mais deste mundo.

Elza

TU ÉS ASSIM

De olhar mui ternurento,
fácies angélico de paz,
um rosto magro que privilegia
uns lábios criativos de doce mel.

Serena a todo o momento,
de criar volúpia és capaz,
tens nas mãos a mágica alegria,
iludes a mágoa, recusas o fel.

Crias apetite tão suculento,
há comida vasta no cabaz,
só um tonto recusaria
paixão-delírio tão aprazível!


(Retrato integral, sensual, da pessoa amada)
Do livro "VIDA: Paixão e tormento", 2008 (Edições Ecopy).
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Em tempo: pequena descrição de um Corpo, em 3 momentos:
1. ternura, serenidade; 2. auto-dinamismo, alegria; 3. erotismo, cumplicidade.
Poderá eventualmente servir de 4º TPC.

Transfiguração

Partiste de madrugada
sem para mim olhar
só, cerraste-te em ti
na escuridão do teu quarto
jamais captarei tua alma
através do espelho magico
que foi o teu olhar

desalento,culpa,angustia
por aquilo com que te presenteei
que afinal me parece nada
remorsos do abandono dessa noite

recuso-me recordar
teu corpo inerte como um qualquer
não eras tu minha Mãe
jazida de vazio, em leito de morte
faltei-te, tua vida em mim

estranha sensação esta
fugir à vida, à morte
dez anos da tua ausência
e, no sofá te vejo lendo o jornal
perscrutando, energizando
serena e tacticamente como outrora


Eugénia Ascensão

O Mar Parece Azeite: 1000 visitantes

Que óptima ideia.
Parabéns aos "fazedores" do blogue. As mil visitas explicam-se não só pelo conteúdo, mas também pelo agradável aspecto gráfico, etiquetas e facilidade de gestão.
Obrigada. 

M.Teresa R.