terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Outros olhos

Que farei quando tudo arde?
Sá de Miranda
Antes era a fome
Os dedos secos, nodosos e escuros a remexer
A terra
Não havia água como para os marinheiros
Não havia ar como para os pensadores
Rostos caídos, olhares apagados, fronteiras cerradas
A noite durava um longo dia
E uma cantiga baixinho
Para consolar
Da terra brotavam coisas
Laranjas, pipas de vinho, brincos de cerejas
Uma barcaça traçava as águas do rio
A fome não passava
O abutre alisava as penas

As almas gritam
A liberdade!
Primeiro o subsidio, depois o salário, agora o empréstimo
Da terra brotam coisas
Enchem os camiões nas estradas
- Deite-se metade fora!
Manda a lei
E os meninos ao longe com estômagos do tamanho de ervilhas
Têm fome
Os abutres alisam as penas
Dizem
- As fronteiras não existem
- O mundo está na palma da mão
Imagens
A violência já não se faz de olhos inchados e peles purpúreas
Penduram-se as almas espetadas em pregos toscos e enferrujados
Que doem
No Silêncio

Que farei quando tudo arde?
Rasgo a folha de papel à minha frente
Fecho os olhos
Com o peso do mundo nas pálpebras
Viajo para o interior de mim
Limito-me
A acreditar

Abro os olhos,
Outros,
Pego no lápis e recomeço.

Arde no meu olhar o universo

Que farei quando tudo arde?”
[Sá de Miranda (1481-1558)]

Não sei se sou capaz de lavar o meu olhar
Do fogo e da dor que lavram no universo.
Não sei. Sou náufrago das chamas desmedidas
Deste tempo humano sem paz e incapaz de um verso.

Nem as chuvas todas de todos os invernos do universo
Podem lavar as franjas do teu nome a céu aberto.
Impossível reescrever a paz e a ternura da alma
Das crianças sobre a tentativa do apagamento do sangue
(tão vivo aos olhos das mães, dos pais e dos irmãos)
Inocentemente vertido pelo chão. Impossível. Voam as bombas
E a carne dos suicidas embatendo cegas na inocência das crianças
E dos homens embrulhados no medo e na morte sem esperança.
Impossível não olhar a morte amortalhada na brancura pálida.
Impossível não sentir a revolta desmedida. Impossível não ter medo
Até somente do teu nome. Impossível não possuir insónias geradas na dor
E nas imagens das atrocidades que os olhos assustados gravaram na alma
Indeléveis. Impossível não olhar as armas cruéis que vieram em busca de outras
Armas. Impossível não sentir o ódio como mortífera sombra de poderes alheios
De interesses disfarçados, de mentiras vestidas de verdades, de enormidades.

E há quem durma a sono solto sem lavar as mãos e o olhar ensanguentados.
E há quem coma sem nojo entre cadáveres frescos por lavar. E há quem lave
As mãos secando-as em toalhas de linho enxovalhando-as como se fossem
Lençóis onde se embrulham tantas ruínas de humanidade. E há quem discurse
Sobre o acto democrático de matar em nome do seu deus em nome da sua paz
Em nome do fingido medo de armas de destruição maciça, quer dizer, em nome
Da preguiça de cuidar no respeito e no direito de existir e de pensar diferente.
E há quem pense que o poder é a força a qualquer preço, mesmo que em apreço
Esteja a morte, esteja o sofrimento, esteja a injustiça, e esteja a indiferença.

Arde no meu olhar o universo. E não sei o que fazer do incêndio que devora
Homens e mulheres e crianças que trazem somente por horizonte o vazio
Da esperança. E não sei apagá-lo. Como saber apagar a labareda das imagens
Sangrentas das chamas que os devoram? Tudo arde. Que farei?


2008.12.09
José Almeida da Silva

A venda e o cigano estão no banco

Eis o resultado do trabalho oficinal de Escrita Criativa II sobre três versos (um octassílabo e dois heróicos quebrados) de um poema de A. M. Pires Cabral, in Que comboio é Este. Edição do Teatro de Vila Real, Dezembro de 2005.

A venda e o cigano estão no banco.
O comboio era uma tenda triste
e um grito de telemóvel insiste.
Ninguém atende, nem o saltimbanco
que resite ao som atrapalhado.

E lá fora espantam-se as árvores
com os palhaços que vieram da cidade.

O circo está assim montado
e o cigano vende um Ipod usado
e a clientela aplaude o saltimbanco
que compra o roubo
com um ar experimentado -
saltimbanco de olhos vendados,
sem vara e sem cautelas,
o comboio e nós dentro
.

Joana Espain e José Almeida da Silva

Eu, Inquisidor

Que faço quando tudo arde?
Sá de Miranda, 1481-1558
Eu,
Inquisidor,
única esperança
de remissão,
ardo nas chamas da salvação divina.


Eu,
Inquisidor,
convoco o homem
o herege pertinaz,

posto a tormento no suplício
vê nascer a verdadeira fé
em cima do potro ou nas cordas do polé

essa criança que ofende
o Pai
reacende as brasas do amor celeste


Eu,
Inquisidor,
nada vejo:
nem sonhos,
nem palavras,
nem a carne rosácea que perante mim se disforma

vejo a alma
o pecado e o vício
é este o meu santo ofício.


Eu,
Inquisidor,
queimo as palavras, os sonhos,
a carne cinzenta que perante mim se reforma

e quando tudo arde,
sou eu sublime
sou eu santidade.


Raquel Patriarca
nove.dezembro.doismileoito

Desperta-me de noite

E este é o segundo:

Desperta-me de noite
o teu desejo
na vaga dos teus dedos
com que vergas
o sono em que me deito

É rede a tua língua
em sua teia
é vício as palavras
com que falas

A trégua
a entrega
o disfarce

E lembras os meus ombros
docemente
na dobra do lençol que desfazes

Desperta-me de noite
com o teu corpo
tiras-me do sono
onde resvalo

E eu pouco a pouco
vou repelindo a noite
e tu dentro de mim
vai descobrindo vales.

Maria Teresa Horta

As nossas madrugadas

Há dois poemas da Maria Teresa Horta que parecem também eles um canto e contraponto. Quase não sei qual deles gosto mais. Deixo os dois para que escolham. Este é o primeiro:

Desperta-me de noite
o teu desejo
na vaga dos teus dedos
com que vergas
o sono em que me deito

pois suspeitas

que com ele me visto e me
defendo

É raiva
então ciume
a tua boca

é dor e não
queixume
a tua espada

é rede a tua língua
em sua teia

é vício as palavras
com que falas

E tomas-me de força
não o sendo
e deixo que o meu ventre
se trespasse

E queres-me de amor
e dás-me o tempo

a trégua
a entrega
e o disfarce

E lembras os meus ombros
docemente
na dobra do lenços que desfazes
na pressa de teres o que só sentes
e possuíres de mim o que não sabes

Despertas-me de noite
com o teu corpo

tiras-me do sono
onde resvalo

e eu pouco a pouco
vou repelindo a noite

e tu dentro de mim
vais descobrindo vales.

Maria Teresa Horta

Minha Senhora de Mim






Comigo me desavim
minha senhora
de mim

sem ser dor ou ser cansaço
nem o corpo que disfarço

Comigo me desavim
minha senhora
de mim

nunca dizendo comigo
o amigo nos meus braços

Comigo me desavim
minha senhora
de mim

recusando o que é desfeito
no interior do meu peito

Maria Teresa Horta