segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Vontade

“a medo vivo, a medo escrevo e falo”
António Ferreira, 1528-1569


E se é verdade o que dizem
sobre o amor não ser eterno.
É devolver o que se sente
ou se pensa que sente,
já sem certeza de nada,
e guardar apenas a memória
de um mundo enganado de
perfeições inventadas.

E aquele a quem se ama,
composição de conceitos
próprios, torna-se entidade livre
de à força ser imagem  e significado
de quem precisa de o amar.

E se é verdade que o amor não é eterno.
Pouco importa,
que hei-de manter as perfeições inventadas
por teimosia de vontade,
que não escondo nem calo.
Mas entretanto,
a medo escrevo, a medo vivo e falo.


Raquel Patriarca
dezasseis.dezembro.doismileoito

A hora mais exacta

Imagens
que voltavam devagar,
se encostavam a ela sem pudor.
E no silêncio, a esfinge impenetrável,
sabendo-lhe de cor o coração:
desistente dos barcos,
depondo pelo chão de outros palácios
as armas mais preciosas.
“Não posso”, acrescentara,
sentindo aproximar-se a hora
exacta.

Ana Luísa Amaral (Lisboa, 1956-)
in Imagens (2000)

Carta de Natal a Murilo Mendes

Querido Murilo: será mesmo possível
Que você este ano não chegue no verão
Que seu telefonema não soe na manhã de Julho
Que não venha partilhar o vinho e o pão

Como eu só o via nessa quadra do ano
Não vejo a sua ausência dia-a-dia
Mas em tempo mais fundo que o quotidiano

Descubro a sua ausência devagar
Sem mesmo a ter ainda compreendido
Seria bom Murilo conversar
Neste dia confuso e dividido

Hoje escrevo porém para a Saudade
- Nome que diz permanência do perdido
Para ligar o eterno ao tempo ido
E em Murilo pensar com claridade -

E o poema vai em vez desse postal
Em que eu nesta quadra respondia
- Escrito mesmo na margem do jornal
Na baixa - entre as compras de Natal

Para ligar o eterno e este dia.

Lisboa, 22 de Dezembro de 1975

Sophia de Melo Breyner Andresen (Porto, 1919-2004)
in O Nome das Coisas (1977)

O poeta ausente o poema ao lado


Pintura a pastel de José Ferreira

Dissecar. Abrir o poema.
Os versos despidos.

O autor presente.
A procura de caminhos da Nascente
entre fragas e salgueiros, a água
corrente, degelo estalado, caldo
e as gotas do orvalho no acordar
da manhã, estremunhado.

O poeta ao lado.
As letras, metáforas, suspensão
parada de segundos e de novo
vários eles descendo a encosta,
passando junto à casa de tábuas
sem portas; a escada por fora
janelas na entrada.

Alguém diz: - São mais bonitos
os cadernos, as argolas mais
a jeito. Não há quadriculado.
Brancas as folhas, os poetas.
Lembram-se: A Tabacaria.

O poema ao lado.
Aliviado. O poeta diz:"- Não é
costume desmontá-lo." Mas tenta-se,
desfia-se, desaperta o cordão
assenta as emendas nas linhas,
"âncora",alisa a renda, caricia
o bordado.

O poeta revelado.
Aguém se acomoda, foge a cadeira,
o guizo dos ruídos interrompe o
juízo. A sala é de ideias régias
a mesa oval, na pintura da parede
desvela-se um pedaço de tela,
a falha no óleo granizado.

E o poeta alheado.
Olha para o chão, escuta, procura,
a ínfima partícula, a premonição:
não ter usado a palavra certa;
a estrofe manca, a ideia fraca,
as reticências, um ponto final.

A vela acesa.
Não é távola nem redonda, mas há quem mande.
Não há malhas, nem elmos, nem espadas.Os
cadernos, as canetas, nas mãos ao lado
e os espaços brancos das palavras moças.

Dez mais dez
ouvidos pendurados, no elevador dos guardanapos;
sobem e descem nos lábios dos versos,
à mesa dos poetas.

E ele ausente.
Guardando um pouco o segredo,
da musa e da semente!

José Ferreira
27 Novembro 2008

Adeus

Partiu o comboio
Vi-o dançar no trilho
Despenteado
As árvores ao lado
Caindo as folhas
Como em mim

O comboio desapareceu
E as árvores ali despidas
Como eu

Em pé
Eu na estação
E a solidão
E eu nua de ti

Comboios partem, comboios vão
E o sentimento cresce lentamente
Um resto um sedimento
Comboios chegam
E eu na estação

O vento varre os medos dos outros
Eu sou transparente
Fico ali
Como tronco de árvore
Despida de ti

A Primavera há de vestir
As árvores de todas as flores
Mas eu sem nada
Ali na estação
Sei que há comboios que vêm e que vão
Mas é certa esta dor
E eu já não te visto, nem te tenho visto
Nem Outono, nem Inverno, nem Verão
Visto sempre e só a solidão
E a longa certeza dos dias compridos

Guernica - O Cavalo



Cavalo dentes e patas
no trovão de estilhaços
Varrendo o chão
de corpos mutilados
Caudas partidas
nos incómodos
humanos actos.
Tourada inexacta
sem cavaleiro -
o touro na mesma guerra
cascos sangue nada.

José Ferreira e Elza Durão