terça-feira, 29 de setembro de 2009

O irreprimível delírio




O irreprimível delírio na forma de um sorriso
as flores diversas, jarros,lírios,fetos
de pés molhados na jarra de cristal junto ao piano.
A melodia muda ecoa a sala onde se guardam as pinturas
iluminuras de pequenas surpresas, pormenores escondidos
de aguarelas e óleos.
Escuta-se um mar de silêncios nas cordas surdas e clássicas
de uma "Alhambra" que observa de rosácea aberta o rosto
o olhar direito, os pés cruzados, os braços como réguas
que seguram os outros braços de veludo canelado.
Nos pulsos oscilam as mãos como borboletas presas
nos ritmos inéditos de uma sinfonia incompleta.

Sem ondas, sem espumas o desenho de um gato e uma menina
de António Carneiro, não original, mais pequeno, um pastel
mesmo assim pessoal e autêntico. Ao lado um barco sem remos
ao sabor do rio, sem qualquer fio humano, difuso, sem ruído
no poder imenso da imagem que a cada um se autoriza
de preencher nas margens da nostalgia, a sua nostalgia
em desenhos que surgem e se apagam na poeira dos dias
os dias que sucedem de outros dias
na interminável viagem
do irreprimível delírio.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Já Confúcio dizia


Arte oriental Sumi-ê; a arte do essencial (retirado da Internet)

"A melhor maneira de se ser feliz é contribuir para a felicidade dos outros."

"Ouvir ou ler sem reflectir é uma ocupação inútil." [ Confúcio ]


Hoje é o aniversário de Confúcio. Lembrei-me o quantas vezes foi citado e resolvi publicar. Ele merece!

sábado, 26 de setembro de 2009

Campos de Morango

Retrato de um Amor



René Magritte " A grande guerra" 1964

Iluminas
a sombra dos meus dias
neste mundo que abrimos devagar
entre o corpo e a alma, sempre mais
secretos no abismo que os devora.

Maior do que este amor nada haverá
até ao fim dos tempos: os teus olhos
respondem ao destino, à sua eterna
graça que paira sobre as nossas vidas
agora a transbordarem numa única
razão feita de luz. a tua boca
inunda a minha língua com o sabor
de todos os sentidos que mergulham
a noite numa água sem retorno.

Para ti absorvo o hálito de um verão
em cada beijo cego, surdo e mudo
respirando de súbito em uníssono:
enigma revelado num só frémito,
insónia submersa que , em silêncio,
regressa pouco a pouco aos nossos braços
afogados na espuma do seu mar.

Perto do teu sorriso há uma fonte
embriagada e pura- meu amor,
dá-me esse coração, essa primeira
raiz de todo o fogo, esse relâmpago
onde cresce para nós a flor de um grito;
segreda-me às escuras mais um sonho
antes de adormeceres sobre o meu ombro.

Um quadro nítido





Enquanto traço o poema
um ruído deslizante como um silvo
o perigoso movimento das coisas
a separação de estruturas
o chão treme
a clarabóia ressoa
na abóbada de vidros em cores.

Um quadro nítido.

Duas cadeiras, uma vazia.
A camisa descansa do aperto de seda.
As calças finas e cinzentas.
As lamas soltas e pulvurolentas
nos lábios das solas, caem lentamente.
Um roupão branco cinta o corpo nu.
Os pés como lapas refrescam na cerâmica
da mesma cor branca do roupão
como prolongamento de giz onde a borracha
acrescentou os pés e os tornozelos.
Um silêncio. Uma ausência.

Um quadro nítido.

Lembro-me dela. Os olhos na cor do mel.
O grande eucalipto, as folhas, o aroma.
Inspiro a ternura desse vento Sul.
Os quentes dias de Setembro
as areias lisas, limpas, disponíveis
a praia, a grande praia deserta.
Os marulhos íntimos na posição de "Leonardo"
os braços e pernas abertas, lado a lado
escutando no azul indigo o horário das aves
que passam na procura de alimento.
Eram mais belos os cabelos de sereia,lisos
sem caracóis, sem os rolos pendurados
33mm de películas, fotografias e mais
fotografias que sorriam devagar no quarto
sem luz, entre líquidos e sombras, antigas.

Um quadro nítido.

Duas cadeiras, uma vazia.
Naquela os restos de roupa e esta agora
onde me sento e traço o poema linha a linha
sem rima, em cruz emergente e singular.
Aqui o lugar original, o real, o horizontal.
Ali a história aquilina, o redemoinho
o retiro inventivo, os estilhaços de vidro
caindo, caindo, caindo do alto prédio
que arranha os céus e abre os paraísos
caindo, caindo, caindo até aos granitos
em partículas ínfimas e poeiras partidas.

Um quadro nítido.

Lembro-me dela. O primeiro dia.
Aquele de um lenço que encolhia o rosto
e era findo de nó pequeno e orelhas de coelho.
A gabardine comprida, os botôes de quatro pontos
as botas altas, o calor das malhas
a fivela muito larga de um cinto.
O meu ar rídiculo pousado no seu caminho
como um fardo de chumbo, sem saída.

Um quadro nítido.

Duas cadeiras, uma vazia.
As paredes deslizando de pés grandes
caminhando nos quatro sentidos
abatendo os quadros, encolhendo o espaço
querendo olhares de perigo.
Não! Não é possível!
Nada é mais que um destino!
Guardo a cor dos prados nos meus olhos
uma abóbada de vidros claros e coloridos
ímpares
e tenho amigos -

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Ternura


Manet "A leitura" 1868

Desvio dos teus ombros o lençol,
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do sol,
quando depois do sol não vem mais nada...

Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
onde uma tempestade sobreveio...

Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo...

Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!

David Mourão-Ferreira, in "Infinito Pessoal"

Em silêncio


Marc Chagall " O poeta " 1911

Esta noite
escondi-me dentro de ti
e não me mexo.
no teu corpo em silêncio
adormeço -

Poema para Galileo


Miguel Ângelo "Criação de Adão" Vaticano 1510

Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.
Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria…
Eu sei… Eu sei…
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!

Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.

Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar – que disparate, Galileo!
– e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação –
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.

Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia?

Esta era a inteligência que Deus nos deu.

Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se tivesse tornado num perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.

Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas – parece-me que estou a vê-las –,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e escrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai Galileo!
Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo,
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.
Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto inacessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa do quadrado dos tempos.

António Gedeão, in 'Linhas de Força'

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Na penumbra descosida a claridade


António Gil fotografia 2008

a impressão esbatida num lenço de seda
colocado de modo pouco usual.
a imprecisão de um rosto oval
na penumbra de uma porta entreaberta -
a primeira palavra...
o olhar vertical no corpo magro
como vara de canas junto ao rio
entre olhares finos de junquilhos
e os saltos de gotas de orvalho
nos mergulhos mais pintalgados de rãs.
Sentir os pés molhados no meio do quarto
na longitude de tábuas como charcos movediços
pelo facto de não ser mais a sombra,
a escondida sombra no centro da lua
ao abrigo difuso de uma luz incompleta
que apenas denota a forma, a mão estendida
o brilho próximo da pupila indisfarçada.
a pestana muda
ao desvendar do segredo tímido e inclinado
do teu rosto, dos teus olhos, dos teus lábios
na penumbra descosida a claridade -
a voz húmida de uma segunda palavra...

Esta é forma fêmea



Salvador Dali "Vénus e cupidos" 1925

Esta é a forma fêmea:
dos pés à cabeça dela exala um halo divino,
ela atrai com ardente
e irrecusável poder de atração,
eu me sinto sugado pelo seu respirar
como se eu não fosse mais
que um indefeso vapor
e, a não ser ela e eu, tudo se põe de lado
— artes, letras, tempos, religiões,
o que na terra é sólido e visível,
e o que do céu se esperava
e do inferno se temia,
tudo termina:
estranhos filamentos e renovos
incontroláveis vêm à tona dela,
e a acção correspondente
é igualmente incontrolável;
cabelos, peitos, quadris,
curvas de pernas, displicentes mãos caindo
todas difusas, e as minhas também difusas,
maré de influxo e influxo de maré,
carne de amor a inturgescer de dor
deliciosamente,
inesgotáveis jactos límpidos de amor
quentes e enormes, trémula geléia
de amor, alucinado
sopro e sumo em delírio;
noite de amor de noivo
certa e maciamente laborando
no amanhecer prostrado,
a ondular para o presto e proveitoso dia,
perdida na separação do dia
de carne doce e envolvente.

Eis o núcleo — depois vem a criança
nascida de mulher,
vem o homem nascido de mulher;
eis o banho de origem,
a emergência do pequeno e do grande,
e de novo a saída.

Não se envergonhem, mulheres:
é de vocês o privilégio de conterem
os outros e darem saída aos outros
— vocês são os portões do corpo
e são os portões da alma.

A fêmea contém todas
as qualidades e a graça de as temperar,
está no lugar dela e movimenta-se
em perfeito equilíbrio,
ela é todas as coisas devidamente veladas,
é ao mesmo tempo passiva e activa,
e está no mundo para dar ao mundo
tanto filhos como filhas,
tanto filhas como filhos.
Assim como na Natureza eu vejo
minha alma refletida,
assim como através de um nevoeiro,
eu vejo Uma de indizível plenitude
e beleza e saúde,
com a cabeça inclinada e os braços
cruzados sobre o peito
— a Fêmea eu vejo.

Walt Whitman, in "Leaves of Grass"

domingo, 20 de setembro de 2009

Suzanne




Suzanne takes you down to her place near the river
You can hear the boats go by
You can spend the night beside her
And you know that she's half crazy
But that's why you want to be there
And she feeds you tea and oranges
That come all the way from China
And just when you mean to tell her
That you have no love to give her
Then she gets you on her wavelength
And she lets the river answer
That you've always been her lover
And you want to travel with her
And you want to travel blind
And you know that she will trust you
For you've touched her perfect body with your mind.
And Jesus was a sailor
When he walked upon the water
And he spent a long time watching
From his lonely wooden tower
And when he knew for certain
Only drowning men could see him
He said "All men will be sailors then
Until the sea shall free them"
But he himself was broken
Long before the sky would open
Forsaken, almost human
He sank beneath your wisdom like a stone
And you want to travel with him
And you want to travel blind
And you think maybe you'll trust him
For he's touched your perfect body with his mind.

Now Suzanne takes your hand
And she leads you to the river
She is wearing rags and feathers
From Salvation Army counters
And the sun pours down like honey
On our lady of the harbour
And she shows you where to look
Among the garbage and the flowers
There are heroes in the seaweed
There are children in the morning
They are leaning out for love
And they will lean that way forever
While Suzanne holds the mirror
And you want to travel with her
And you want to travel blind
And you know that you can trust her
For she's touched your perfect body with her mind.

sábado, 19 de setembro de 2009

Sentes,Pensas e Sabes que Pensas e Sentes


Georgia O'Keefe " From de Lake " 1924

Dizes-me: tu és mais alguma cousa
Que uma pedra ou uma planta.
Dizes-me: sentes, pensas e sabes
Que pensas e sentes.
Então as pedras escrevem versos?
Então as plantas têm idéias sobre o mundo?

Sim: há diferença.
Mas não é a diferença que encontras;
Porque o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as cousas:
Só me obriga a ser consciente.

Se sou mais que uma pedra ou uma planta? Não sei.
Sou diferente. Não sei o que é mais ou menos.

Ter consciência é mais que ter cor?
Pode ser e pode não ser.
Sei que é diferente apenas.
Ninguém pode provar que é mais que só diferente.

Sei que a pedra é a real, e que a planta existe.
Sei isto porque elas existem.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram.
Sei que sou real também.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram,
Embora com menos clareza que me mostram a pedra e a planta.
Não sei mais nada.

Sim, escrevo versos, e a pedra não escreve versos.
Sim, faço idéias sobre o mundo, e a planta nenhumas.
Mas é que as pedras não são poetas, são pedras;
E as plantas são plantas só, e não pensadores.
Tanto posso dizer que sou superior a elas por isto,

Como que sou inferior.
Mas não digo isso: digo da pedra, "é uma pedra",
Digo da planta, "é uma planta",
Digo de mim, "sou eu".
E não digo mais nada. Que mais há a dizer?

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
Heterónimo de Fernando Pessoa

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

A penugem de uma rola



Cézanne "A montanha de Sainte Victoire" 1904


Atrás de uma pedra solta a chave escondida no muro tosco
o limite de um canteiro improvisado onde crescem
as ervas habituais agora secas no mês de setembro.
Não a chamo de casa, ternamente a cabana de pedra como se
possível nas terras duras de um Douro interior.
Aqui no lugar de gravuras históricas, nas madrugadas
frescas, provam-se figos nos braços de árvores frágeis
na posição diagonal, a inclinação sussurrante de perigo.

Aproxima-se o calor inteiro das vindimas, a sorte dos
bagos nos cestos de verga, o encosto dos cachos húmidos
o sumo doce, o primitivo aroma infermentado do mosto.
O Sol de Agosto bateu oblíquo nas gavinas reviradas
deu lugar ao moscatel: colares claros de pérolas
às mouriscas, nos acetinados reflexos de azeviche.

Quente. Calor. Está muito quente. Um arrepio.

Na planície da testa crescem gotas na sombra
de um chapéu largo de palha entrançada.
O ar treme junto ao pessegueiro, estonteia.
No campo é fácil encontrar granitos na forma
de pequenos menhires. Sento-me e descanso .
Penduro o corpo pensativo de Rodin
de punho erguido nas covas da face
e admiro a porta cravejada de tachas
ferrugentas, quadradas, rudes e belas
ao sabor dos excessos das intempéries.

Quente. Calor. Muito quente.

A porta cravejada da cabana, assim a chamo
não é casa, não tem quartos, um só postigo
um só piso, onde circulam lagartixas
os artifícios das aranhas, aqui e ali
um mosquito, algumas formigas.

A mão no esconderijo, a chave, entro
dentro onde respiro o ar infértil
de um lugar só, rodeado de alfaias.
Reconheço a cor da noite
a ponta de um dedo etéreo, invisível
directo ao fio fino de crina
a corda sensível, o som longínquo
de um concerto de Paganini.

Sento-me no chão de um barro cru e gravo
a mensagem de um dia árduo:
"Quem me dera que a vida fosse tão leve
como a penugem de uma rola que tanto voa
como permanece, saboreando o tempo
parada e suspensa."

Enquanto escrevo, passa um lacrau de ar seguro
(sem dar a importância da altitude, o grande humano)
segue o trajecto do muro, da chave escondida
segue um caminho, na espera de círculos de fogo
mas não desanima -

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock


Paula Rego "A Fada Azul Sussurrando a Pinóquio"

S'i crediesse che mia risposta fosse
A persona che mai tornasse al mondo,
Questa fiamma staria senza più scosse.
Ma però che già mai di questo fondo
Non torno vivo alcun, s’i’odo il vero,
Sanza tema d’infamia ti rispondo.

(Dante Alighieri, La Divina Commedia, Inferno)

Então vem, vamos juntos os dois,
A noite cai e já se estende pelo céu,
Parece um doente adormecido a éter sobre a mesa;
Vem comigo por certas ruas semidesertas
Que são o refúgio de vozes murmuradas
De noites em repouso em hotéis baratos de uma noite
E restaurantes com serradura e conchas de ostra:
Ruas que se prolongam como argumento enfadonho
De insidiosa intenção
Que te arrasta àquela questão inevitável…
Oh, não perguntes “Qual será?”
Vem lá comigo fazer a tal visita.

Passeiam damas na sala para além e para aqui
E falam de Miguel Ângelo Buonarroti
A névoa amarela que esfrega as costas nas vidraças
O fumo amarelo que esfrega o focinho nas vidraças
Passou a língua dentro dos recantos da noite,
Demorou-se nos charcos que ficam na sarjeta,
Deixou cair nas costas a fuligem solta das chaminés,
Deslizou pelo terraço, de repente deu um salto,
E, ao ver serena aquela noite de Outubro,
Deu uma volta à casa, enroscou-se e dormiu.

Haverá por certo um tempo
Para o fumo amarelo que desliza pela rua
E esfrega as costas nas vidraças;
Haverá um tempo, tempo
De compor um rosto para olhares os rostos que te olharem;
Tempo de matar, tempo de criar,
E tempo para todos os trabalhos e os dias, de mãos
Que se erguem e te deixam cair no prato uma pergunta;
Tempo para ti e tempo para mim,
E tempo ainda para cem indecisões
E outras tantas visões e revisões
Antes de tomar o chá e a torrada.

Passeiam damas na sala para além e para aqui
E falam de Miguel Ângelo Buonarroti.

Haverá por certo um tempo
De pensar se corro tal risco. “Corro tal risco?”
Tempo de virar costas e descer as escadas
Com esta clareira calva no meio do cabelo –
(Hão-de dizer: “Este já tem pouco cabelo!”)
Com a casaca, colarinho hirto subido até ao queixo,
Gravata distinta e discreta mas ornada de um sóbrio alfinete –
(Hão-de dizer: “Que magro está, nos braços e nas pernas!”)
Vou correr o risco
De perturbar o universo?
Num só minuto há tempo
Para decisões e revisões, a revogar noutro minuto.

Pois já as conheço todas bem, conheço todas –
Sei as noites, as tardes, as manhãs,
Às colheres de café andei medindo a minha vida;
Sei que em breve agonia se esvaem as vozes
Abafadas na música de um quarto mais além.
Como havia eu de ousar, assim?

E já conheço os olhares, conheço todos –
Olhares que te reduzem a fórmulas e a dizeres,
E quando eu for apenas fórmula, esticado em alfinete,
Quando estiver na parede, trespassado, contorcido,
Como haverei então de começar
A cuspir as pontas de cigarro dos meus dias e jeitos?

E como havia eu de ousar, assim?
E já conheço os braços, conheço todos –
Braceletes nos braços brancos e nus
(Mas com uma penugem loira à luz do candeeiro)
Será pelo perfume de um vestido
Que sou levado assim a divagar?
Braços estendidos na mesa ou envoltos num xaile.
E havia eu de ousar assim?
Por onde havia eu de começar?

E se eu disser que dou passeios por becos quando anoitece,
E vou fitando o fumo que sobe do cachimbo
De homens em mangas de camisa, à janela, solitários?…

Eu devia ter sido um ferro de duas garras
A rasgar o fundo desses mares de silêncio.

E a tarde, a noite, a dormir tão sossegada!
Afagada por dedos esguios,
A dormir… exausta… ou a fingir,
Estirada aqui no chão, à beira de nós dois.
Depois do chá, dos bolos, dos gelados, eu tinha ainda
Aquela força que provoca a crise do instante?
Mas apesar de lágrimas e jejuns, lágrimas e preces,
E apesar de ter visto a minha cabeça(um tanto calva já) ser entreguenuma salva,
Não sou nenhum profeta – e isso pouco importa;
Já vi tremer o meu instante de esplendor
E vi o eterno lacaio agarrar-me a casaca, rindo sorrateiro,
E bastará dizer que tive medo.

E tinha valido a pena, depois de tudo isto,
Depois da geleia, das xícaras, do chá,
Entre porcelanas, a meio de qualquer conversa de nós dois,
Tinha valido a pena
Ter rematado o assunto com um sorriso,
Ter estreitado o universo numa bola
E fazê-la rolar, rumo a qualquer questão inevitável,
E dizer: “Sou Lázaro e venho de entre os mortos.
Voltei para vos contar tudo, vou contar-vos tudo” –
Se alguém, ajeitando a cabeça dela numa almofada,
Dissesse: “Não era nada disso que eu queria dizer
Não é isso, nada disso.”

E tinha valido a pena, depois de tudo,
Tinha mesmo valido a pena,
Depois dos pátios, dos poentes, das ruas chuviscadas,
Dos romances, das xícaras de chá, das saias arrastando pelo chão –
E depois disto e tantas coisas mais? –
Não é possível dizer mesmo o que quero dizer!
Mas se uma lanterna mágica mostrasse na tela a imagem dos nervos:
Tinha valido a pena
Se alguém, compondo a almofada ou tirando um xaile,
Dissesse, ao voltar-se para a janela:
“Não é isso, nada disso,
Não era nada disso que eu queria dizer.”

Não! Não sou o príncipe Hamlet e nem tinha que ser;
Sou um fidalgo da corte, desses que servem
Para aumentar a comitiva, abrir uma ou duas cenas,
Dar conselhos ao príncipe; instrumento dócil, é claro,
Reverente, satisfeito por ser prestável,
Político, meticuloso e avisado;
Cheio de sentenças doutas, um tanto obtuso todavia;
Às vezes, por sinal, quase ridículo –
Quase o bobo, às vezes.

Estou a ficar velho… Estou a ficar velho…
Hei-de andar com a dobra da calça revirada.

E se eu puxar atrás o risco do cabelo? Arrisco-me a trincar
um pêssego?
Hei-de vestir calça de flanela branca e passear na praia.
Já ouvi as sereias cantando, umas às outras.

Creio que para mim não vão cantar.
Tenho-as visto na direcção do mar a cavalgar as ondas
Penteando crinas brancas de ondas encrespadas
Quando o vento revolve as águas escuras e brancas.

Ficámos nas mansões do mar nós dois em abandono
Entre as ondinas com grinaldas de algas castanhas purpurinas
Até que vozes humanas nos despertam e morremos naufragados.

Tradução: João Almeida Flor
Assirio e Alvim

The Love Song of J. Alfred Prufrock (original)

S’i credesse che mia risposta fosse
A persona che mai tornasse al mondo,
Questa fiamma staria senza più scosse.
Ma però che già mai di questo fondo
Non torno vivo alcun, s’i’odo il vero,
Sanza tema d’infamia ti rispondo.

(Dante Alighieri, La Divina Commedia, Inferno)

Let us go then, you and I,
When the evening is spread out against the sky
Like a patient etherized upon a table;
Let us go, through certain half-deserted streets,
The muttering retreats
Of restless nights in one-night cheap hotels
And sawdust restaurants with oyster-shells:
Streets that follow like a tedious argument
Of insidious intent
To lead you to an overwhelming question. . .
Oh, do not ask, “What is it?”
Let us go and make our visit.

In the room the women come and go
Talking of Michelangelo.

The yellow fog that rubs its back upon the window-panes
The yellow smoke that rubs its muzzle on the window-panes
Licked its tongue into the corners of the evening
Lingered upon the pools that stand in drains,
Let fall upon its back the soot that falls from chimneys,
Slipped by the terrace, made a sudden leap,
And seeing that it was a soft October night
Curled once about the house, and fell asleep.

And indeed there will be time
For the yellow smoke that slides along the street,
Rubbing its back upon the window-panes;
There will be time, there will be time
To prepare a face to meet the faces that you meet;
There will be time to murder and create,
And time for all the works and days of hands
That lift and drop a question on your plate;
Time for you and time for me,
And time yet for a hundred indecisions
And for a hundred visions and revisions
Before the taking of a toast and tea.

In the room the women come and go
Talking of Michelangelo.

And indeed there will be time
To wonder, “Do I dare?” and, “Do I dare?”
Time to turn back and descend the stair,
With a bald spot in the middle of my hair -
[They will say: "How his hair is growing thin!"]
My morning coat, my collar mounting firmly to the chin,
My necktie rich and modest, but asserted by a simple pin -
[They will say: "But how his arms and legs are thin!"]
Do I dare
Disturb the universe?
In a minute there is time
For decisions and revisions which a minute will reverse.

For I have known them all already, known them all;
Have known the evenings, mornings, afternoons,
I have measured out my life with coffee spoons;
I know the voices dying with a dying fall
Beneath the music from a farther room.
So how should I presume?

And I have known the eyes already, known them all -
The eyes that fix you in a formulated phrase,
And when I am formulated, sprawling on a pin,
When I am pinned and wriggling on the wall,
Then how should I begin
To spit out all the butt-ends of my days and ways?
And how should I presume?

And I have known the arms already, known them all -
Arms that are braceleted and white and bare
[But in the lamplight, downed with light brown hair!]
Is it perfume from a dress
That makes me so digress?
Arms that lie along a table, or wrap about a shawl.
And should I then presume?
And how should I begin?

Shall I say, I have gone at dusk through narrow streets
And watched the smoke that rises from the pipes
Of lonely men in shirt-sleeves, leaning out of windows? . . .

I should have been a pair of ragged claws
Scuttling across the floors of silent seas.

And the afternoon, the evening, sleeps so peacefully!
Smoothed by long fingers,
Asleep . . . tired . . . or it malingers,
Stretched on the floor, here beside you and me.
Should I, after tea and cakes and ices,
Have the strength to force the moment to its crisis?
But though I have wept and fasted, wept and prayed,
Though I have seen my head (grown slightly bald) brought in upon a platter,
I am no prophet–and here’s no great matter;
I have seen the moment of my greatness flicker,
And I have seen the eternal Footman hold my coat, and snicker,
And in short, I was afraid.

And would it have been worth it, after all,
After the cups, the marmalade, the tea,
Among the porcelain, among some talk of you and me,
Would it have been worth while,
To have bitten off the matter with a smile,
To have squeezed the universe into a ball
To roll it toward some overwhelming question,
To say: “I am Lazarus, come from the dead,
Come back to tell you all, I shall tell you all”
If one, settling a pillow by her head,
Should say, “That is not what I meant at all.
That is not it, at all.”

And would it have been worth it, after all,
Would it have been worth while,
After the sunsets and the dooryards and the sprinkled streets,
After the novels, after the teacups, after the skirts that trail along the floor -
And this, and so much more? -
It is impossible to say just what I mean!
But as if a magic lantern threw the nerves in patterns on a screen:
Would it have been worth while
If one, settling a pillow or throwing off a shawl,
And turning toward the window, should say:
“That is not it at all,
That is not what I meant, at all.”

No! I am not Prince Hamlet, nor was meant to be;
Am an attendant lord, one that will do
To swell a progress, start a scene or two
Advise the prince; no doubt, an easy tool,
Deferential, glad to be of use,
Politic, cautious, and meticulous;
Full of high sentence, but a bit obtuse;
At times, indeed, almost ridiculous -
Almost, at times, the Fool.

I grow old . . . I grow old . . .
I shall wear the bottoms of my trousers rolled.

Shall I part my hair behind? Do I dare to eat a peach?
I shall wear white flannel trousers, and walk upon the beach.
I have heard the mermaids singing, each to each.

I do not think they will sing to me.

I have seen them riding seaward on the waves
Combing the white hair of the waves blown back
When the wind blows the water white and black.

We have lingered in the chambers of the sea
By sea-girls wreathed with seaweed red and brown
Till human voices wake us, and we drown.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Teus olhos


Salvador Dali "Dali pintando Gala de costas" 1973

Teus olhos são a pátria do relâmpago e da lágrima,
silêncio que fala,
tempestades sem vento, mar sem ondas,
pássaros presos, douradas feras adormecidas,
topázios ímpios como a verdade,
outono numa clareira de bosque onde a luz canta no ombro
duma árvore e são pássaros todas as folhas,
praia que a manhã encontra constelada de olhos,
cesta de frutos de fogo,
mentira que alimenta,
espelhos deste mundo, portas do além,
pulsação tranquila do mar ao meio-dia,
universo que estremece,
paisagem solitária.

Octavio Paz, in "Liberdade sob Palavra"
Tradução de Luis Pignatelli

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Canavial


Pablo Picasso "Os enamorados" 1923

Desafinado talvez esse meu canto de Oceano;
búzio em eco de um azul estranho
enquanto a alma sopra na terra
desliza nos sonhos de um mar.
Talvez vulgar esta escrita de comuns lugares
na sombra das sombras de caminhos desiguais;
pedras lavadas nas águas serenas
lamas caídas no curso rápido dos rios.
Demasiado simples talvez de modo e de querer
um olhar de olhos verdes num campo de espigas
um canavial de milho em cima da minha melodia
onde em magro labirinto de mãos dadas
se encostam os lábios.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Palavras para a minha mãe



Pablo Picasso "Mãe e filho" 1905

mãe, tenho pena. esperei sempre que entendesses
as palavras que nunca disse e os gestos que nunca fiz.
sei hoje que apenas esperei, mãe, e esperar não é suficiente.

pelas palavras que nunca disse, pelos gestos que me pediste
tanto e eu nunca fui capaz de fazer, quero pedir-te
desculpa, mãe, e sei que pedir desculpa não é suficiente.

às vezes, quero dizer-te tantas coisas que não consigo,
a fotografia em que estou ao teu colo é a fotografia
mais bonita que tenho, gosto de quando estás feliz.

lê isto: mãe, amo-te.

eu sei e tu sabes que poderei sempre fingir que não
escrevi estas palavras, sim, mãe, hei-de fingir que
não escrevi estas palavras, e tu hás-de fingir que não
as leste, somos assim, mãe, mas eu sei e tu sabes.

José Luís Peixoto, in "A Casa, a Escuridão"

sábado, 12 de setembro de 2009

Como Queiras, Amor...


Miró "Danger" 1925

Como queiras, Amor, como tu queiras.
Entregue a ti, a tudo me abandono,
seguro e certo, num terror tranquilo.
A tudo quanto espero e quanto temo,
entregue a ti, Amor, eu me dedico.

Nada há que eu não conheça, que eu não saiba,
e nada, não, ainda há por que eu não espere
como de quem ser vida é ter destino.

As pequeninas coisas da maldade, a fria
tão tenebrosa divisão do medo
em que os homens se mordem com rosnidos
de malcontente crueldade imunda,
eu sei quanto me aguarda, me deseja,
e sei até quanto ela a mim me atrai.

Como queiras, Amor, como tu queiras.
De frágil que és, não poderás salvar-me.
Tua nobreza, essa ternura tépida
quais olhos marejados, carne entreaberta,
será só escárneo, ou, pior, um vão sorriso
em lábios que se fecham como olhares de raiva.
Não poderás salvar-me, nem salvar-te.
Apenas como queiras ficaremos vivos.

Será mais duro que morrer, talvez.
Entregue a ti, porém, eu me dedico
àquele amor por qual fui homem, posse
e uma tão extrema sujeição de tudo.

Como tu queiras, meu Amor, como tu queiras.

Jorge de Sena, in 'Post-Scriptum'

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Peço-te...amanhã o universo


Auguste Rodin "O beijo"

Peço-te o calmo despertar das nascentes
abrindo as noites de luz
o começar de um rio mais próximo do céu.

A quietude escondida de um limbo desliza
(apesar das nuvens e um mar de tempestade)
sabemos que aguarda a hora inquieta
a batida do tambor o crescente embaraço
de um sentimento doce; cascata de mel;
o zumbido atarefado sem teias nem véu.

Não se veste o desejo de dias cinzentos
(podem ser tristes mas há o sonho)
por isso Peço-te o bater de asas de gaivota
nas cidades imperfeitas - ganha o mar
o berço de um rochedo - a ilha
que te abraça como a única árvore.


Sei do gelo e da janela de um só vidro
a alvorada sem imagens - as gaiolas impróprias
de um jardim de rosas plácidas de aromas
dos poemas sobre um campo de arvoredos
mas há o calor de um ar de orvalhos
as cores divisas de um bosque ao longe
onde se cingem os lábios salinos
e os corpos ímpios e originais.

por isso Peço-te os olhos interditos e os navios
o grito crepitante dos assobios
enquanto passam os ventos -

Casa Branca Nau Preta


Edward Hooper "Casas junto ao mar" 1951

Estou reclinado na poltrona, é tarde, o Verão apagou-se...
Nem sonho, nem cismo, um torpor alastra em meu cérebro...
Não existe manhã para o meu torpor nesta hora...
Ontem foi um mau sonho que alguém teve por mim...
Há uma interrupção lateral na minha consciência...
Continuam encostadas as portas da janela desta tarde
Apesar de as janelas estarem abertas de par em par...
Sigo sem atenção as minhas sensações sem nexo,
E a personalidade que tenho está entre o corpo e a alma...

Quem dera que houvesse
Um terceiro estado pra alma, se ela tiver só dois...
Um quarto estado pra alma, se são três os que ela tem...
A impossibilidade de tudo quanto eu nem chego a sonhar
Dói-me por detrás das costas da minha consciência de sentir...

As naus seguiram,
Seguiram viagem não sei em que dia escondido,
E a rota que devem seguir estava escrita nos ritmos,
Os ritmos perdidos das canções mortas do marinheiro de sonho...

Árvores paradas da quinta, vistas através da janela,
Árvores estranhas a mim a um ponto inconcebível à consciência de as estar vendo,
Árvores iguais todas a não serem mais que eu vê-las,
Não poder eu fazer qualquer coisa gênero haver árvores que deixasse de doer,
Não poder eu coexistir para o lado de lá com estar-vos vendo do lado de cá.
E poder levantar-me desta poltrona deixando os sonhos no chão...

Que sonhos? ... Eu não sei se sonhei ... Que naus partiram, para onde?
Tive essa impressão sem nexo porque no quadro fronteira
Naus partem — naus não, barcos, mas as naus estão em mim,
E é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta,
Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta,
E nada que se pareça com isto devia ser o sentido da vida...

Quem pôs as formas das árvores dentro da existência das árvores?
Quem deu frondoso a arvoredos, e me deixou por verdecer?

Onde tenho o meu pensamento que me dói estar sem ele,
Sentir sem auxílio de poder para quando quiser, e o mar alto
E a última viagem, sempre para lá, das naus a subir...

Não há, substância de pensamento na matéria de alma com que penso ...
Há só janelas abertas de par em par encostadas por causa do calor que já não faz,
E o quintal cheio de luz sem luz agora ainda-agora, e eu.

Na vidraça aberta, fronteira ao ângulo com que o meu olhar a colhe
A casa branca distante onde mora... Fecho o olhar...
E os meus olhos fitos na casa branca sem a ver
São outros olhos vendo sem estar fitos nela a nau que se afasta.
E eu, parado, mole, adormecido,
Tenho o mar embalando-me e sofro...

Aos próprios palácios distantes a nau que penso não leva.
As escadas dando sobre o mar inatingível ela não alberga.
Aos jardins maravilhosos nas ilhas inexplícitas não deixa.
Tudo perde o sentido com que o abrigo em meu pórtico
E o mar entra por os meus olhos o pórtico cessando.

Caia a noite, não caia a noite, que importa a candeia
Por acender nas casas que não vejo na encosta e eu lá?

Úmida sombra nos sons do tanque noturna sem lua, as rãs rangem,
Coaxar tarde no vale, porque tudo é vale onde o som dói.

Milagre do aparecimento da Senhora das Angústias aos loucos,
Maravilha do enegrecimento do punhal tirado para os atos,
Os olhos fechados, a cabeça pendida contra a coluna certa,
E o mundo para além dos vitrais paisagem sem ruínas...

A casa branca nau preta...
Felicidade na Austrália...

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Trazendo a luz dos barcos


Fotografia retirada da internet

As luzes múltiplas de altas torres projectam a noite
junto à praia de Leça
como almas cintilantes de únicos liames
entre lugares geometricamente omissos.
Sonâmbulo sigo a rota de um muro, um varandim marítimo.
Suponho as luzes na mitologia de um enxame
em movimento cruzado de um Éden em girândola
um zumbido grande na colmeia de um Concílio
decidido, destruindo as torres ácidas
resumindo a grinalda de luzes em relva
em heras num baloiço de braços longos
como adorno de uma casa plana
surgindo do nada num relâmpago
de telhas cintilantes e chamas.
Vejo um rasgo claro de uma janela
sinto o ruído que crepita lenhas
em flâmulas de árvores de frutos
um "pôt-pourri" de aromas
um jogo de sombras.

Um olhar silvestre acalma o mar bravo
que chega de papiros enrolados - frases
de uma voz distante
no bater branco das águas
trazendo a luz dos barcos -

terça-feira, 8 de setembro de 2009

A Hora Mais Exacta





Imagens
que voltavam devagar,
se encostavam a ela sem pudor.
E no silêncio, a esfinge impenetrável,
sabendo-lhe de cor o coração:
desistente dos barcos,
depondo pelo chão de outros palácios
as armas mais preciosas.
“Não posso”, acrescentara
sentindo aproximar-se a hora
exacta.

ANA LUÍSA AMARAL, Imagens, Campo das Letras, 2000: 47

O constante diálogo


Camille Pissarro "Young women and child at the Well" 1889

Há tantos diálogos

Diálogo com o ser amado
o semelhante
o diferente
o indiferente
o oposto
o adversário
o surdo-mudo
o possesso
o irracional
o vegetal
o mineral
o inominado

Diálogo consigo mesmo
com a noite
os astros
os mortos
as ideias
o sonho
o passado
o mais que futuro

Escolhe teu diálogo
e
tua melhor palavra
ou
teu melhor silêncio.
Mesmo no silêncio e com o silêncio
dialogamos.

Carlos Drummond de Andrade, in 'Discurso da Primavera'

domingo, 6 de setembro de 2009

Uma voz incompleta


Robert Doisneau "O beijo no Hotel de Ville" 1950

Um sabor de "Straciatella" sobre uvas
e morango na cor certa do desejo.
Um sábado de céu despido veste um mar
de linhas brancas.
Sinto sinais de uma ternura imensa
a mistura salgada que embala
numa escrita de penas, impermeável
aos mares da China;
sonetos salvos no desassossego
de um sentimento maior:
"Amor é fogo que arde sem se ver"
Escrevo as frases alinhadas
nas folhas de um bloco adolescente:
quadrados, nuvens, um quarto de lua
a cor rosa.
Inclino a cabeça um farol de espelhos
e recomeço o texto de franja descaída
nas dunas de uma ganga macia.
Gravo como artesão ourives
o ouro encoberto de almas indeléveis
belas como cálices de fontes puras
céus de mistérios
filamentos de um dossel bordado
reflexos de deusas na minha inquietude.
Há um trilho de lábios no meu diário
uma subida de muitas escadas
sem descanso no meu berço-
continuo os dias e mesmo
quando adormeço sonho a noite
e desfio sem ruído
uma voz incompleta

sábado, 5 de setembro de 2009

espaços quentinhos no Porto

Caros colegas,

serve este post para vos falar de dois espaços muito simpáticos na cidade onde podem assistir a sessões de poesia:

- O Gato Vadio, na rua do Rosário nº 281;

- O renovado Labirintho, na rua Nossa Senhora de Fátima nº 334, que todas as quintas feiras dedica a noite à poesia. Em cada sessão os livros dos poetas lidos sofrem um desconto de 20%.


Amanhã, dia 6 de Setembro, vou a uma sessão no Gato, às 22h. Apareçam! Era um prazer rever-nos. Abraço

Disciplina


Georges Braque "Porto na Normandia" 1909

O trabalho começa ao romper do dia. Mas nós começamos,
um pouco antes do romper do dia, a reconhecer-nos
nas pessoas que passam na rua. Ao descobrir os raros
transeuntes, cada um sabe que está sozinho
e que tem sono — perdido no seu próprio sonho,
cada um sabe no entanto que com o dia abrirá os olhos.
Quando a manhã chega, encontra-nos estupefactos
a fixar o trabalho que agora começa.
Mas já não estamos sozinhos e ninguém mais tem sono
e pensamos com calma os pensamentos do dia
até que o sorriso vem. Com o regresso do sol
estamos todos convencidos. Mas às vezes um pensamento
menos claro — um esgar — surpreende-nos inesperadamente
e voltamos a olhar para tudo como antes do amanhecer.
A cidade clara assiste aos trabalhos e aos esgares.
Nada pode turvar a manhã. Tudo pode
acontecer e basta levantar a cabeça
do trabalho e olhar. Rapazes que se escaparam
e que ainda não fazem nada passam na rua
e alguns até correm. As árvores das avenidas
dão muita sombra e só falta a erva
entre as casas que assistem imóveis. São tantos
os que à beira-rio se despem ao sol.
A cidade permite-nos levantar a cabeça
para pensar estas coisas, e sabe bem que em seguida a baixamos.

Cesare Pavese, in 'Trabalhar Cansa'
Tradução de Carlos Leite

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Magnólia




Um banco quadrado de tranças loiras
na sombra interior da magnólia
árvore branca.
Sento-me e sinto-me de inconformidade
nos braços esguios de um pensamento;
viagem virtual e singular

cesse a luz translúcida e ausente
quero apagar as partes más
as que esfarrapam
não por fora
dentro
as rugas de um tempo
de copo vazio
néctar de vida
perdido

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Quotidiano (Reflexão)



Malevitch "De manhã depois da tormenta na aldeia" 1912

Por exemplo, as coisas que faltam neste lugar:
uma enxada para que as mãos não toquem na terra,
um ninho de pardais no canto da relha,
para que um ruído de asas se possa abrigar,
um pedaço de verde no monte que ainda vejo,
por detrás dos prédios que invadem tudo.


Mas se estas coisas estivessem aqui,
também faria falta um copo de água para ver,
através do vidro, um horizonte desfocado;
e ainda os restos de madeira com que,
no inverno, é costume atiçar o fogo
e a imaginação que ele consome.

Como se tudo estivesse no lugar,
pronto para ser usado na data prevista,
sento-me à janela, e fixo a única coisa
que não se move:
o gato, hipnotizado por um olhar
que só ele pressente.

Nuno Júdice, in "Meditação sobre Ruínas"

Menino


Henri Cartier Bresson

Onde estão os sinos
a procissão
as solenes manhãs de Domingo
na prece, na devoção?

Quero ser de novo menino
de calção
meia branca
e o missal de capa preta
na mão!

Não quero crescer!
Não!

terça-feira, 1 de setembro de 2009

A MINHA ESPERANÇA NUM NOVO AMANHÃ

Que seria de mim, de nós,
se perpetuássemos a convicção da espera eterna,
se perdêssemos a esperança num Futuro
de vermos transformado em presente
um 30 de Fevereiro!

Ambição sublime, para nós realidade,
comunhão bendita à luz do nosso eu
ou de um qualquer Deus...

Só por isso
eu devo sorrir quando triste,
eu não sofro demasiado vendo jovens enlaçados
seguindo seus caminhos mesmo sem rumo!

Só por isso
eu consigo um frágil equilíbrio,
que uma tristeza-revolta me não aniquile,
que uma grande angústia se dissipe,
enquanto espero por te reencontrar!

Só por isso
eu consigo fugir de mim mesmo,
deixando para trás todo um sentir,
tão belo e tão humano que nos uniu,
e que será, por certo, amanhã em nós
vivência constante como outrora,
meu sublime e inacabado amôr!

( António Luíz, Porto -1990; in " EU e O SILÊNCIO",
1994 - 1ª edição / 2008 - Edições Ecopy )