segunda-feira, 27 de julho de 2009

Acaso


Paul Klee- Federpflantze 1919




No acaso da rua o acaso da rapariga loira.
Mas não, não é aquela.

A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.
Perco-me subitamente da visão imediata,
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a outra rapariga passa.

Que grande vantagem o recordar intransigentemente!
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.

Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por gênio, se calhar,
Se calhar, ou até sem calhar,
Maravilha das celebridades!

Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...
Mas isto era a respeito de uma rapariga,
De uma rapariga loira,
Mas qual delas?
Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;
E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade
Numa outra espécie de rua;
Por que todas as recordações são a mesma recordação,
Tudo que foi é a mesma morte,
Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?

Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.
Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?
Pode ser... A rapariga loira?
É a mesma afinal...
Tudo é o mesmo afinal ...

Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isto é o mesmo também afinal.

Álvaro de Campos, in "Poemas"

A propósito de um voo no Canal sem Mancha





A avioneta, asas largas lentas de esqueleto
recolhe de novo o mar, a travessia
amacia a brisa e estende mais longe
o lenço preso de cortinas no elmo
além no cubículo, lugar de um céu;
esse vasto Oceano lateral começa
nas praias brancas da ilha grande
adensa de azuis aos poucos metros
e avança sem medo, Calais, o cais de França.

Quis ser aviador, cruzar em(braços)
sentir livres tempos, ler o vento.

Em pequeno planava corredores de pés plenos
assentes no barulho trémulo de motores
crescentes nos lábios abertos; óculos grossos
de redondos, olhos abertos de sonhos;
cortava o ar no suposto perigo de
atrás das nuvens surgir o inimigo
ou antes o alívio; não ser mais
de um leve esvoaçar, uma cantiga
no bico curvo decidido de uma ave
nas alturas; a companhia, o abrigo
de um olhar no espaço sem degraus
que encanta, solta a alma, anima.

Associo esse desejo antigo ao bálsamo
bebida fresca, som amigo de perder
as rédeas que sufocam e nos pólens
da notícia, ganhar de novo asas
subir ao Paraíso.