domingo, 31 de janeiro de 2010

pensamento mágico


Kasimir Malevitch "Três figuras" 1932


tens tudo o que precisas: água mineral
bolachas de passas, dois livros policiais.
colocas a almofada de rectângulo alto
postura de sofá. desligas o rádio.
um tiro fatal. um homem de chapéu inglês
um anel grande, a inconfundível bengala;
prata gravada num pescoço de cavalo.
mil e novecentos e vinte a rua gelada.
passos lentos, dispersos de som grave.
queria articular uma defesa, uma palavra.
caiu sem ruído afogado na chuva, na lama.

tens tudo o que precisas: um café forte.
no balcão de mármore abres a máquina,
colocas a cápsula, um pouco de água.
duas torradas saltam no som de Clac!
duas colheres de mel silvestre, puro
alecrim e rosmaninho ao som de twist.
a doçura atenua a premonição do crime.
criar a atmosfera. Quatro velas acesas
gordas e curtas em cima de mesas.
duas amarelas, duas vermelhas.
luz ténue sem filamentos seguros.
as chamas movem as sombras.

não sobes ainda ao quarto.
sentas-te no cotovelo da escada, junto à chávena
no propósito de caírem migalhas da torrada
sobre as tábuas. aquelas ligações absurdas
que imaginam um longo bico de cegonha
recolhendo uma a uma, colocando no pires.
mas são só os dedos de tarefa obsessiva
que preparam o clima de suspense, o momento
no rectângulo alto, na cama, no local adequado.

tens tudo o que precisas: a noite, o livro.
usava uma carteira cara de fechos amarelos.
as luvas descalças sem os fios de harpa.
quando era nova tocava a 1ª de Beethoven
ao piano de forma memorável. O maestro
gostou tanto que anotou o dia, a hora, numa pauta.
mas quis o destino que as mãos de fada,
aquele rosto saído de uma cúpula da capela antiga
aquela voz que era linda, tivesse história trágica.
um anjo de submersas memórias, inquietado:
“obrigaste-me a ler os livros que não percebia”
“a tocar no orgão sanctus, sanctus, que detestava”
“vinte e quatro horas entre paredes fechadas”
“uma boneca de corda sem anseios de alma”
um eco, um eco, um eco, tiros de uma arma.
o corpo escuro, sem fala, incómodo, a mão na bengala.

tens tudo o que precisas: o pensamento mágico.
entras dentro do livro. O braço sobre o ombro.
abraças o vestido largo de rendas.”Shu!..Shu! Tem calma!”
há muito caiu o pequeno revólver, sem utilidade.
apagas todos os indícios.batem à porta. saem pela janela.
a tempo de ouvir, em três relógios diferentes
as duas da madrugada. Tem calma. Tens calma.

a almofada escapa. o corpo horizontal
liga um pouco de música clássica. É inverno.
mas a noite passa, e cada dia é menos um
antes da primavera. depois o mar. depois a praia.

tens tudo o que precisas: um olhar de enseada
que lava nas gotas de sal todas as gotas da alma
uma cimitarra de afectos do tamanho de um castelo
e inventas histórias de cidades, aldeias, igrejas,
duendes, animais que falam, leões que são gatos,
girafas atarracadas, rinocerontes garibaldis.
falas dos desertos cheios de água e uma estrada
de coqueiros onde dançam marcianos.histórias.

tens tudo o que precisas: observas os limbos.
nos intervalos da noite lês livros da colecção vampiro
e perdes o juízo na justiça de salvar heroínas
inocentes vítimas, indefesas, os necessitados
aqueles que tropeçaram sem ninguém ao lado.
e sendo assim adormeces muito calmo, reconfortado.
embarcas em muitos universos, reais, surreais
ou pintados. em barcas de rem, rem, rem
nos sonhos escondidos de pensamentos mágicos


tens tudo o que é preciso: vestes as folhas brancas
escreves poemas, na tinta líquida dos sentimentos.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Um inédito pretexto

Um poema começa de forma imprecisa
Irrompe de um choro contido
de sal sobre a pele
Até deixar de saber o sabor
do verbo
E o poema atinge com a força de um ferro
Porque há na escrita uma dor latente
Uma coisa insidiosa que lateja
sobre a pele
E é sol, e é sal e é só o poema
E é só um poema que pulsa
na pele

O poema persiste de forma improvável
Inunda o olhar de choro composto
só sal no papel
E um poema no rosto
A perder de sentir o sentido
do verbo
E o poema é quem t(f)inge de cor
Porque há no Autor um inédito desejo
de exibir a pele
E o poema é só
um pretexto

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Wally (poema de Sylvia Beirute)



















WALLY


(traduzir o poema. traduzir a tradução.
traduzir a tradução da tradução.
equilibrar uma hesitação na bússola. )
há uma espécie de wally
no corpo do poema que abdica
da sua construção metódica, que se esconde
nos fotogramas dos ecos que se entrelaçam
para escurecerem
sem ceder a arrumações de ideias,
existências completas, corporeidades
absolutas.
não importa mudar as palavras, o poema
seguirá com a sua expectativa legítima,
o seu âmago azul,
a sua particular desmemória e demência,
seguirá
com a validade que dissolve sentidos latos
no interior ácido de sentidos estritos, será
como neve numa recordação invisível.
e eu? eu ainda aqui resto, na beira-mar instintiva
de uma beleza mais fluvial, meditativa,
num fósforo íntimo sobre a rasura
de uma comparação entre dois gestos,
eu procurando o meu wally ou um pequeno
modo de o encontrar,
eu insinuada sobre a importância dos instantes,
eu sobre o poema esperando
o mais fundador sinal de inspiração.
E a propósito: que horas são no poema?

Sylvia Beirute
inédito

o laço branco



a preto e branco
o condicional de uma história brilhante.

cavalo de crina ao vento tropeça no laço invisível.
parte a clavícula de um médico de rosto esquálido,
rugas de bisturi.prenúncio terrível.

um grupo de crianças
oferece ajuda, atira pedras na janela,
a promessa presente de uma escola negra.

a culpa tem origem escura
e morre uma mãe de família de braço curto.

o barão, única autoridade, desvaloriza
a orfã, o orfão, o menino atrasado.
em sua casa há músicas desconcertadas
de piano, de flauta, de um filho em surdina.

na casa ao lado o feitor, na casa ao lado o pastor.
um recém-nascido na corrente de ar.
um espírito maligno que provoca a dor,
a mágoa inocente, a morte de um clássico;
o dependurado num curral onde cede o banco
de toscas tábuas de castanho, a dez passos da igreja
onde ainda, ainda se ouvem as crianças
de vozes finíssimas, a preto e branco.


longe vai a bicicleta. a bicicleta a caminho da cidade,
o menino atrasado, a orfã, o orfão, a viúva e o pecado.
ficou o açoite trágico e um pássaro sem liberdade;
um professor incrédulo de ares enevoados
nos olhos da namorada, claros,
quando os aeroplanos desciam oceanos.
barcos e bombas em quatorze eram tantos.
morreu um prussiano.

a dúvida permanece no último plano
imaculada, nos símbolos de um laço estranho
que atava os braços à volta da cama. as crianças.
o exemplo. o laço branco. a inocência.

ninguém tem culpa formada.por baixo do pano
há um exército de prisioneiros
e uma história brilhante
a preto e branco -

Transcrição de Maria Puig : ode menor

Decidi transcrever, tal como o encontrei, o poema de Maria Puig, escrito na parte de trás de uma novela de Roberto Bolaño, “Estrela Distante”. Esqueceu-se do livro em minha casa, esqueceu-se de muitos livros em minha casa. Ou melhor, em minha casa deixou muita coisa: Muitos textos a meio ou muitos textos completos. Para ela, nada estava completo. Poemas escritos na parte de trás de um recibo, nas margens apertadas de um flier publicitário, de uma agenda cultural, aproveitando a parte branca dos anúncios. Nas margens brancas do Ípsilon e do Expresso, que são curtas e não permitem o verso livre. Os textos desenvolviam-se numa caligrafia tosca, a que já me tinha habituado. Fosse a caneta vermelha ou ao lápis grosso que estivesse mais à mão. Transcrevi por completo um caderno cheio de poemas seus. Foram muitas outras coisas que deixou em minha casa.


Transcrevi o poema, como um paleógrafo atento e imparcial. Às vezes tive de usar uma lupa em forma de régua, para perceber se determinada letra era um “a” ou um “o”: Isso era importante porque muitas, eram criações de palavras novas. Transcrevia enquanto ouvia Bil Evans, música que associava sempre à sua chegada e à sua permanência em minha casa. Esquecia-me, muitas vezes, que estava com o Gmail aberto, em estado on-line, e era consecutivamente interrompido da minha função de paleógrafo. Então parecia que se abria o mundo de dentro rede: Várias pessoas que nos chamam e de que gostamos e que esperam isto e aquilo de nós.


O poema falava de gatos e fora escrito em Portugal, país onde viveu por quatro anos, como prostituta na cidade do Porto perto do Marquês. Imaginei o quarto da pensão cheio de livros, de camionistas e advogados que entram e saem, agora com outra brasileira ou ucraniana no seu lugar. Imaginei Maria Puig, a travesti, que em breve se tornava a Hermafrodita associada à cidade do Porto. Imaginei a gaveta cheia de preservativos, cuecas e soutiens vermelhos; Com alguns poemas no fundo escritos de forma desordenada entre um ou outro cliente. A pronúncia do Recife. O portátil sempre aberto no Messenger, com várias janelas de gente do Brasil a falar, antigas companhias, ou um ou outro cliente.
A guardar em Word, um anúncio publicitário a enviar para o jornal: “Maria – Hermafrodita – Marquês – 30 beijinhos” – Às vezes actualizando, dando mais descrições: “Gulosa, Morena, Faço tudo”. Depois um número de telemóvel que era só usado para as marcações.
Imaginei todas as conversas que ela deixou na minha memória. Pensando onde estaria neste momento. Num avião, num voo Rio-Lisboa, ou morta no fundo do poço como acontece a alguns travestis europeus, perseguidos por um bando rapazes da vida e com pouca sorte, de extrema-direita ou sem qualquer ideal. Um ou outro grupo a quem correu pior a noite.
Mas havia uma certa segurança na vida de Maria enquanto esteve no Porto. Tinha a protecção de muitos e era prostituta de luxo, signifique essa palavra, seja o que for.


Perdia constantemente os cadernos cheios de poemas. Deixava-os numa mesa de café, num clube, no cabeleireiro, enquanto atendia uma chamada no telemóvel, deixando-os em cima da mesa. Daí a minha necessidade de registar tudo o que deixou escrito aqui em casa. Salvaguardar pelo menos essa parte da sua produção.
Cada dia, como um arqueólogo da escrita, descobria coisas novas, um poema nas margens de um livro de Pavese, nas traseiras de um jornal desportivo, de uma revista cor de rosa, nas colunas de um desdobrável do supermercado. Copiava o que estava escrito na sua caligrafia tosca, fosse aquilo a letra vermelha ao lado da fotografia de uma actriz famosa, de um jogador de futebol, a quem também tinha rabiscado os calções, ou feito uma tatuagem nazi com a bic azul. Tudo isso passava a computador, sem qualquer interpretação. Limitando-me a registar, segundo normas específicas de transcrição, que seguia rigorosamente: documento que havia pendurado num painel de cortiça ao lado de computador. Ouvindo sempre o mesmo disco que associava à sua vida em minha casa.



Aqui fica a útil transcrição de “Ode menor”

................................................................................


Ode menor (Gato único em queda*)
Maria Puig

If my pillow could talk, imagine what it would say

Nina Simone


*

Um jardineiro muito curioso, acabou de plantar margaridas e girassóis, depois pousou os instrumentos de jardinagem e caminhou em direcção a casa. Não encontrou o caminho de regresso a casa, e percebeu que estava no fundo do mar. Mandou os séculos em espera sentarem-se, nas cadeiras do jardim. Os séculos olharam-se ao espelho e viram um gato negro de olhos verdes. Viram-se reflectidos cheios de espuma. O jardineiro contou-lhes três histórias e eles adormeceram. Não se sabe se o seu sonho foi o de uma nova era, mas quando despertam tinham os olhos cheios de azul e alegria subaquática. O jardineiro bebeu aguardente de anémona marinha e adormeceu. Todo ele espera subaquática e monólito aceso. Acordado por um tubarão martelo ou um peixe espada, regressou para o seu jardim e não para casa.


*

Vi várias coisas de cristal que confundiam poesia e prosa e que eram também eu própria; Confundiam também noite e dia, vida e morte, homem e mulher e eram hermafroditas como todos os milénios a vir.
Vi essas coisas de cristal a olharem-se ao espelho, a porem gel com as suas mãos peludas. Pagavam-me. Penteavam-se com o orgulho de um ditador asiático já morto, que escrevia poesia nos anos oitenta e que escrevia poesia nos anos noventa. Governador de um país de nome estranho, que escrevia livros de poemas que eram de leitura obrigatória na quarta classe e que todos os meninos do país acabado em “ão” deviam recitar: Três poemas escolhidos pela professora, no início e no fim de cada aula, antes do hino nacional e depois do hino nacional. Mandou construir várias estátuas suas em ouro que ocupavam toda a capital.
Vi todos os gatos que te morderam o pescoço fino. Perversos e queridos dentro das galerias da piscina ou do inferno - Ouvi o que eles te diziam, os ossos finos que te partiam: Gatos escritores e contabilistas que me ligavam às quatro da manhã ou cinco da manhã, com uma paciência de girafa. Gatos que me fodiam na pensão de manhã e me fodiam na pensão à tarde e me fodiam à noite e nos dias seguintes, como se fosse um dia único feito de silicone - Um gato único, num milénio cheio de cio. Gatos advogados, gatos camionistas ou montadores de andaimes que poupavam todo o mês só para me foderem. Trinta euros que deixavam e não gastavam em vinho ou na alimentação dos filhos. Camionistas, empresários, traficantes, professores de informática, gatos divorciados que me pagavam em droga.
Um gato único de olhos verdes e inchados pelo cio, como se olhasse para dentro e para fora ao mesmo tempo (E nisto lembrei-me de Battaille, do seu olhar estrábico; E de me dizeres que os estrábicos são os mais inteligentes e a maior parte das vezes sobredotados, porque a própria natureza já lhes deu um olho para cada lado, uma visão múltipla, ou mais abrangente, reconhecida pela ciência). Jorge Luís Borges também o era. Nessa altura deste-me uma lista de mais de dez autores estrábicos. Nunca nenhum estrábico ganhou o Nobel, dizia o início da lista.

*

O gato parecia que olhava para um aquário de peixes dourados, mas o aquário estava dentro de si, então o gato olhava ao mesmo tempo para dentro e para fora como um vento confuso, ou um tornado que perdeu a direcção e se come a si próprio: Os peixes dourados de fora, como eu, e os de dentro; Sei de um museu de História Natural em Toronto que possui um cavalo-marinho hermafrodita conservado em etanol. Foi descoberto por uns pescadores do Quebec em 1914, e que os biólogos acharam por bem conservar. O gato único já tinha ido a esse museu e tinha pago caro para ver o cavalo-marinho, que guardou na memória e que depois apagou da memória, ou seja: A reforçou. Na memória do gato já não era só um cavalo-marinho hermafrodita, era mais do que isso. Um gato único que descobriu a América e me possuiu – Um gato que lê romances cor-de-rosa e joga pólo aquático ao fim da tarde. E depois me liga, depois do treino, ainda no balneário, pergunta se eu estou disponível. Desliga o telemóvel, vem ter comigo. Liga o telemóvel, deita-se com a mulher. Volta a ligar o telemóvel em silêncio. O seu nome aparece depois na necrologia do jornal e nos registos electrónicos do banco. O seu nome desaparece depois. O jornal extingue-se, extingue-se o uso do papel como veículo de informação, extingue-se a necessidade de suporte. Desaparece toda a memória do cavalo-marinho e do gato.

*

Gatos que metem processos e os ganham ou os perdem. Que pedem às suas avós para lhes cozerem a camisa ou para lhes cozerem os calções da equipa.
Pedem um café e possuem-me rápido e automaticamente como um avião que passa,
Gato único que desenrola todos os fios. Faz deles um só, Fio ou antena. Gato que se esqueceu da sua cara e passa sem memória:


Já não gato, mas só cio
que escreve e abraça
Cio que precisa de calor e de
Chover: tropical na queda e na descida
amigo na chegada e na partida


Cio que é fumo industrial e Gelatina de hormonas que nutre as plantas

Gatos que têm um ataque cardíaco por segundo e
se vêem para cima da novela que mais gostam, deixando
que uma marca de esperma cole duas ou três páginas de uma Obra Prima da Literatura Universal, de um trabalho de uma vida de um escritor esquecido.
Para que a leiam e construam por cima (incorporando o passado)

Gatos de montanha e gatos urbanos que desdobram e cozem os séculos para com eles fazerem uma mini-saia vermelha. Que violam de manhã e à noite (analmente e não só) os professores de História Clássica e os professores de História Contemporânea – Gatos que me possuem ao som de Nina Simone e de Dina e que vêem com os olhos a piscar, o festival da canção. Gatos-Cio que vestem a História Universal, vermelha e curta,
Que saltam milénios e telhados só para me possuírem e serem já Coisa única:

Homem e mulher, dia e noite, vida e morte – Em tudo hermafrodita, à chegada e à partida, a vontade de ser toda a coisa ao mesmo tempo – Um milénio hermafrodita e de sexo curto, com o seu bikini vermelho a mergulhar, a sair da piscina mais fresco – A possuir-me e a esquecer-me: Múltiplo.



Maria Puig

Nuno Brito

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Psiquetipia (ou Psicotipia)


Roy Lichtenstein "Ainda a vida com um aquário de peixes vermelhos" 1972



Símbolos. Tudo símbolos...
Se calhar, tudo é símbolos...
Serás tu um símbolo também?

Olho, desterrado de ti, as tuas mãos brancas
Postas, com boas maneiras inglesas, sobre a toalha da mesa.
Pessoas independentes de ti...
Olho-as: também serão símbolos?
Então todo o mundo é símbolo e magia?
Se calhar é...
E por que não há de ser?

Símbolos...
Estou cansado de pensar...
Ergo finalmente os olhos para os teus olhos que me olham.
Sorris, sabendo bem em que eu estava pensando...

Meu Deus! e não sabes...
Eu pensava nos símbolos...
Respondo fielmente à tua conversa por cima da mesa...
"It was very strange, wasn't it?"
"Awfully strange. And how did it end?"
"Well, it didn't end. It never does, you know."
Sim, you know...Eu sei...
Sim, eu sei...
É o mal dos símbolos, you know.
Yes, I know.
Conversa perfeitamente natural...Mas os símbolos?
Não tiro os olhos de tuas mãos...Quem são elas?
Meu Deus! Os símbolos...Os símbolos...

Alvaro de Campos

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Cio

Encher de Atlântico todos os países que perco, tirar
O til à expressão nacional, ser tudo o que passa e ficou por dizer,
Construir um sonho em grande angular

Rechear o Atlântico da Vontade de estar em ti
só ser tudo aquilo que te arde e se ri

A dor é o melhor gerador, porque cria e levanta:
Permite o aforismo, cria o Cio da gente


Todas as luzes laranja de Apolo se incendeiam quando te ris,
Todas as sílabas se humedecem como um cavalo marinho cheio de cio
E são só borboletas de asas azuis à procura de um emprego, com vontade
de passar os textos a Word, porque só tem sete dias. Guardar lamas no Peru, ser o eterno pastor em procura – Ser Tu e todos que ardem, ser as lamas espalhadas com meninos em cima.

Tudo o que se espelha e é espelho dentro


Nuno Brito



“A realidade provém da ficção”

Satoshi Kon


*

Os sonhos a masturbarem-se, a encherem-se de tinto
A arca de Pessoa, todas elas a Literatura abre, o irmão dos
séculos, o irmão de Kafka que por não queimar acende,
o teu riso de todos os sabores; O que é uma arca por abrir?



Nuno Brito


Carrilhão suíço

Ser um armador de mão firme e dura, tudo
O que é nó, amarração e segura
– união traço, muitas portas a abrir
Alarme de várias luzes laranja, o vento que as abre

abelha que traça a sua rota firme,
sino de bronze que nos adormeceao mesmo tempo que acorda,
menina a ouvir o carrilhão suíço
a dar à corda a manivela mecânica, como espera
ainda viva e vulcânica

Ser só alarme e traço seguro, nós,
ter sido o que não perdura, A maré aflita a levar um e outro barco
A dama que aproxima
O carrilhão que parte



Nuno Brito

atmosfera


Cartier Bresson "Brie" 1968


por hábito colocava sinais nas folhas dos livros
poderia ser aquele bilhete de um cinema francês
com muitos diálogos e declarações de alma
registado no w de uma fila, no ímpar
de um número, na cor cinza de um timbre;
um registo de futuras memórias, as duas
a página e um filme.

dizia:
as palavras dos livros têm dedos firmes
que nos chamam, têm a voz que acorda
que nos prende e agarra a que chamamos nossa
e o pressentimento de que quem escreve
sabia da nossa atmosfera, do nosso mundo;
se gostamos dos passeios na penumbra
ou das cores luminosas de uma praia;
e sabe a côr, e sabe a hora, a hora muda
a hora exacta da leitura.

dizia:
as palavras dos livros abraçam
como naquele romance de outra época
um êxtase feliz de Vladimir e Zinaida
por debaixo de um xaile ou a dobar malha
e o encontro de um rosto, e um outro rosto
e o decoro vestido de rubro a despertar o sonho.

Grande Angular

I.


Quis ser realizador de cinema mudo
e captar a
câmara negra, o registo quente e solar:
do teu sorriso, monólito aceso de obsediana e
voo perfeito, captar num ângulo Múltiplo um abraço e
tudo que é gente e Sobe
ser só ângulo de encontro e perca, tudo que queima, derrete e chove

Sonho de borboleta africana, pirilampo e urso polar;
Concerto de muitos sinos e do Chile inteiro no fundo do mar,
unir os sonhos por novelos de espuma
Recheá-los de tudo o que está por fundir,
Ser a Gente que veio e a Gente que há de vir



II.


Unir dois sonhos numa grande angular
Induzir a Pluto que se torne gente e só vontade de errar,
Comboio que acende e passa a fronteira
Comboio com todas as pontas acesas, só Desejo de Abraçar




Nuno Brito

Sunser Boullevard

II


Abrir um baú, possuir um século Inteiro
fechar-te os olhos num beijo, ver neles explodirem
e renascerem em Super Novas todas as estrelas que
abrem portas – és só as portas que elas abrem, os caminhos a percorrer, uma criança que brinca sozinha,
pensando que ninguém a vê, mas que está em directo na Sky news,
com a sua inocência exposta, uma criança que é um século que te arde no queixo e adocica o palato, uma criança que é só queixo e multidão (todos os que sobem e descem) ser o fim da tarde a beber e a vestir os seus calções justos:
os séculos e as pernas a tremerem,
só instante, como qualquer gesto humano.

Tudo é febre e dança sem controlo
ponta e mola, agulha: Tudo que acende um Abraço.


Nuno Brito

O Grande Arquitecto

Agora lembrei-me do Hélder e das suas mãos compridas,
que mais pareciam azeite e tempestade de areia fina, agora lembrei-me que o Atlântico estava sempre dele em redemoinho e o sugava para dentro concêntricamente até, um limite Negro, (Lembrei-me da sua forma inclinada – com que fazia tudo, como se estivesse a rezar: lembrei-me de nos seus olhos ver vários pinguins e atirarem-se para coisa nada, o fundo do lago, da alma, o vazio de um armazém, um raciocínio rápido – Como guardava a Foz do Rio com Mahler nos ouvidos – Como lhe corria uma rio na coluna cheio de seixos finos. Vi também uma tempestade de açúcar em todos os portos do seus pulmões aguados, cheios de serradura e cascalho no fundo - Os nós que Fazia dentro de tudo: O seu hálito virado a norte, agora lembrei-me que a amizade é de todos os arquitectos, o mais forte.




Nuno Brito

Água que espera

Às vezes acontece ser um meta-barco
ou um meta poço que desalinha a sua rota concêntrica
só para te ver sorrir, e é só fundo e água ainda por vir

o seu meta-capitão assustado e de
cara nenhuma a comprimir nos dedos finos o musgo que lhe serve de gel ao cabelo ondulado

Saber-se viagem de cais nenhum, A mulher e o relâmpago que o espera
Todos os baús que abre,

A rota que lhe adoça a boca





Nuno Brito

O Atlanta



A arte nunca é terminada, só interrompida e abandonada

Leonardo da Vinci



Lembro-me muitas vezes das histórias dos Atlantas que me contavas, na sua rota geométrica que era só tinta e malhada na espera,
esperavam virados para o mar, os europeus, Um amigo que acendesse Tudo

quero-te tornar o Atlântico num sopro,
numa Sofia que cresce num búzio e que é salgada como a voz búlgara
e é também minha mãe
o oceano que nos une, chuva que te cai na cara
que te cai no passeio, na pedra trabalhada
que incendeia Tikoman, a minha mãe, o vento
sinto pena de não te ter beijado em bombazine claro


Pensei que este poema nunca fosse escrito, porque seria sempre acrescentado
Dama aflita que uiva e grita em frente à Calvin Klein, procurei uma forma clássica
de te dizer que te Adoro, não há forma para a amizade, o que cresce está sempre incompleto, a vontade de rechear o mar de relâmpagos que sentia Luís Miguel Nava,
O abraço que te serve de Escada

Cantiga de Amigo eterna e a ser feita, Sempre em Ti

a luz está acesa


Nuno Brito

Fila para Avatar

O meu avatar fala sozinho e
tem um gorro azul feito de memória e loucura
está recheado de sombra roxa e pôr do sol, Outro dia
na fila do cinema disse-me que criou dez heterónimos,
perguntei-lhe porquê o número redondo e porque confundia
sempre poesia e prosa,

O meu avatar é só riso espalhado
Sinto nos seus olhos azuis e cabelo ondulado
a vontade de ser toda a gente, Ladrão na Austrália, pregador escocês,
professora de Yoga, Prostituta no Marquês,
vendedor de alhos filipino, sucateiro na Amadora,


O meu avatar criou dez heterónimos de olhos cansados - disse-me na fila do cinema,
que tinha medo do escuro

Medo que o escuro o recheasse por dento, como uma procissão silenciosa de virgens negras ou búfalos subaquáticos
Contou-me que os seus heterónimos são gente educada com corpos de silêncio, desejam uma boa jornada a este e àquele que passa, perguntam mutuamente a hora, mesmo sabendo sempre que hora faz.


Têm necessidade de falar, às vezes entram todos num café e pedem um copo de água. Seguem o telejornal às riscas com os seus gorros azuis e escrevem no seu gesto quadriculado um ou dez poemas de amor:

O meu avatar chama os heterónimos dos seus jogos de azar, e conta a todos eles uma história de amor, encomenda-lhes um ensaio sobre este ou aquele autor, uma corrente de vanguarda, coze-lhes os calções rotos da jornada,

Leva-os a ver o pôr do sol e a todos eles alinhados diz que a paisagem é bonita, mete-os na fila do cinema enquanto vai comprar bombocas, manda-os ir evangelizar a Escócia, enquanto fuma um cigarro em todo o lado, já só átomo com vontade de se fundir a outro átomo, para que a União seja a calma.

Vejo nos seus olhos, vária gente que escreve
Às vezes enquanto tira as meias ou as calça, pergunta-me sobre a utilidade da literatura e reparo que ele se parece uma nuvem,
Uma nuvem carregada que se olha ao espelho, guardo no vidro transparente a sua calma e chuva tropical , e vejo no espelho toda a gente com máscara e sem a Máscara,

a máscara é também gente:
O que se calca é também o que se é)

É então que ele diz: Tu és queda livre e curva que não passa mensagem nenhuma.
………………………………………………………………………………………………………...

Não tenho argumentos contra esse gorro azul

Recheio-o de medo e vamos ao cinema – Preenchemos todo o quarteirão Coppedé, esperamos que o sol se ponha, olhamos as máscaras gregas de pedra, a coluna clássica de cada varanda, vemos sem ver a gente lá dentro, descalça a ouvir o seu Tango, - às vezes atira-se de uma varanda e dá-me a mão pequena dizendo – Tu não passas mensagem nenhuma, és só queda e confusão – O Vento tira fotografias às máscaras e a nós todos, revela-nos, no musgo, nas paredes no riso, no fundo de todos os poços, no espelho – Este querer estar sempre em ti, ser já só fronteira, o avatar a comer com a boca cheia de espuma de morango, diz esta e aquela sentença, ouço-o com atenção – Pergunta-me sobre a necessidade de registar? Diz depois parecendo um triângulo – Toda a memória provém do sol –

Guarda muita coisa ao mesmo tempo e é só riso a espalhar,
escreve a negrito as sentenças de maior relevo,

Umas vezes não pergunta e é só dança outras é
fronteira e meta-susto que se alimenta,
recheia-se a si próprio de vento
Estamos na fila, na tela e no acento.



Nuno Brito

Spritz*

A noite tem a veia inchada e a cara múltipla e acesa
que tudo guarda – a noite não trabalha os seus textos e é a realizadora
mais perversa, tem as suas próprias leias e viola as suas próprias leias,
feitas de fio grosso de ovelha com que coze a mini-saia vermelha, A noite não usa metáfora
e varre com a sua enchada todos os que a usam, faz curtas metragens que não regista, porque não é preciso registar que aquele não pagou e ficou no
fundo do rio com a barriga inchada; a noite apagou essas provas e organiza festas no Lusitano, é travesti que entra em todos os bares e pede um Spritz, perguntei o caminho para a biblioteca a vários gatos negros, todos me indicaram o caminho ou a perca, com a sua voz que parecia de Gente


As suas leis são parecidas às do voleibol com bola em chamas ou aos mais complexos jogos de Azar,

*

Toca Óscar Petterson e Carlos Parede com os seus dedos escuros e Acende-os, é apenas um cartógrafo com coragem, que traçou vários equadores no seu próprio peito para que não
Dormisse nunca e tornasse
qualquer registo fútil
A noite disse:

Tu usas a metáfora meu filho!


…………………………………………………………………………………………

Frita com areai fina
em vez de pão ralado
tatua em agulha fina, os braços magros do injectado
e as bordas dos sonhos dos que dormem Muitos na Estação Termini

A noite não permite o poema social, veste o seu soutien de estrelas ou areia Fina
Entra na Brodway – Kadoc – Na ourivesaria para roubar,
Viola as prostitutas que não aparecem no dia seguinte na Estrada Nacional,
Em que século foi? O crime da Gucci? Onde comprou esse gorro?

A noite é a fingir


Nuno Brito

Meta-Barco

Pudéssemos ser um meta-barco
ou um meta-poço no seu fundo sonho de abelha
E já nem barco nem poço - Só mel e asa torta
Te faça explodir em riso e brilhar – meta barco e meta poço,
vontade de te abraçar.



Nuno Brito

domingo, 24 de janeiro de 2010

pensando

faz-me pensar
não somos nós mais que muitos?
não somos nós seres únicos? marcas digitais únicas?
reduzidos a números, a estatísticas, a tabelas
decapitados
sem pinga de sangue

faz-me pensar
naquelas órbitas, paradas, sequer névoa
de quem já nada pede, nada quer,
ausente, irreal, na plateia de um filme de cinema
para maiores de nascidos

faz-me pensar
em cada rosto, cada ruga
um contar de histórias sem fim
desconhecidas
em cada perda, um elo se quebra
um nunca mais definitivo

faz-me pensar
todas estas vidas diminuídas em multidão
que nos entram pela casa adentro
sem sequer um "posso?"
e mantens igual o acto maquinal
de levar a comida à boca já tão cheia
de olhos postos em outras tão cheias de
nada
soltas tua culpa com um "coitados!" ocasional
e segues a tua vida
e todos seguem as suas vidas
e o mundo gira e gira e gira

e tu? onde estavas tu?
quando a terra decidiu mostrar as entranhas!
adormeceste em serviço?
esqueceste de proteger os que em ti acreditam?
os poupados agradecem-te!
e os outros? os engolidos pelo cinzento?
esses já nada dizem, só silêncio

faz-me pensar
afinal também tu és
silêncio

Clara Oliveira

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

A luta das letras...ou o leito das letras...ou as letras que deito...ou o luto que dito


_________________________________________________

Sobre a minha incapacidade de escrever mais assiduamente neste blog

Há letras que permanecem no seu pérfido silêncio.
Entre folhas e impressões e sob a fluorescência da noite,
há um exército de letras que me olham em desafio.
Nos olhos, a lente faz contacto imediato com este absurdo
de alfabética afronta.
Como se atrevem?
Escrevo-as nas curvas da minha mão que rebola tonta.
Segue-se uma valsa de tinta arrastada que desenha os passos
no papel.
Mas logo ali há letras que deixam de ser minhas e me acusam
de falsa existência. Ou de falta existente.
Sou julgada de imediato perante a incapacidade de escrever.
Condenada à eterna revolta das letras que me escorrem sem propósito.

o cálice onde molharam as cerejas


René Magritte "Os amantes" 1928

ele
subiu uma calçada de escadas escorregadias.
devia trazer outros adereços. não os sapatos de sola
que incha e embola. as botas grossas de camurça.
insistiu rodeado de cuidados, lento na sequência
de vários níveis na subida
que levava ao morro: o ponto de encontro.

ela
subiu as escadas em corrida. atrasada.
as sapatilhas ajudavam. um, dois, uma cantiga.
um desviar do tempo até chegar mais acima
ao morro: o ponto de encontro.


um corrimão esteve sempre imóvel.
aguardou. a ele, a ela, e uma vista sobre o Tejo.

os dois
límpidos sentaram-se num banco de pedra
quando ela chegou.
molharam cerejas num cálice de água. vinha com sede.
estava cansada. mas no rosto tinha um ar de tangerina
um perfume brando e dentes brancos de chiclete
no morro: o ponto de encontro -

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

engordando

na escuridão de afectos
há fome, há sede
uma fome faminta de fogo
uma sede sedenta de céu
em partículas de tempo encalho
num corpo do qual me alimento
inspiro odores que da pele se soltam
ferro os dentes alvos na carne rosada
dilacero secretos entremeios que torno meus
e eu engordo
vou engordando

bebo o sangue, grosso e escuro
da cor de reposteiro de sacristia
corpo e sangue d'alguém
alguém sem nome, sem rosto
anónimo, sem identidade
que importa! alguém. ou talvez ninguém
dos olhos sugo a alma
e é dela que me lambuzo
os dedos, o queixo
ponto alto do bródio, delírio do palato
e eu engordo
vou engordando

até nos ossos de marfim afio os caninos
e a seiva leitosa sorvo em orgasmos sacudidos
seca. deixo-te seca.
pele e osso. transparente como um cadáver.
folha seca de Outono que se calca e quebra
num som de estalidos debaixo dos pés
foguetes em dia de festa. sem festa
seca como uma folha de papiro
amarelecida, envelhecida antes do tempo,
com o impiedoso bater dos ponteiros
seca
numa nudez frágil de alma depenada

de um golpe desprendo-me
arrumo desarrumada, num caixote qualquer,
sem etiqueta, na minha memória mais remota
tão mais que já perdi e de vez esqueci
levou-te o vento do norte
em mil grãos de poeira, desfragmentada
outro chão, outro colo.

na escuridão de afectos
um outro corpo do qual me alimento
e eu engordo
vou engordando

Clara Oliveira

O escritor de olhos oblíquos


Kazimir Malevitch "Retrato do compositor" 1913

o escritor de olhos oblíquos escreve muitos livros.
o vértice que equilibra.
fala sempre de gatos perdidos e personagens vagos;
divagam em atmosferas desconhecidas,
fazem-se ao vento, fogem nos montes, evolam-se por magia.

o último gato chamava-se kafka e era branco.
segundo os vizinhos habitava o fundo de um poço
de uma casa abandonada.
desapareceu às treze horas de um dia treze - hora de almoço.

um jovem de olhos oblíquos teve um acidente de mota,
coxeava para não ir escola. Usava um gorro de orelhas
e uma muleta que afastava as ervas invasivas
na casa abandonada.
sentava-se no muro do poço e miava baixinho.
depois lançava friskies e dizia que o gato falava.

um dia o gato disse:
atravesso do fundo do poço, a rua da madressilva
a travessa do sino, e chego ao bairro da china.
sobre o bairro da china há uma janela gradeada.
vê-se um jardim de árvores grandes e flores pequenas.
um jardineiro de olhos oblíquos e aros redondos
habita esse jardim. canta e dança junto à magnólia,
à buganvília, à aromática tília e junto à grade
de uma janela parada no meio da colina.


o jovem de olhos oblíquos não quer ir à escola.
prefere ler livros e falar com o gato que habita
o fundo do poço.
o jardineiro do bairro da china canta e dança.
habita uma cabana no cimo da grande tília
e tem uma antena para ver musicais da broadway.

o escritor de olhos oblíquos quando não escreve livros
corre a maratona.
retira vírgulas, transporta exclamações e reticências
acrescenta ou enfatiza demasiadas informações´
às fatias ou na íntegra.

o escritor de olhos oblíquos gosta de neblinas
da cor lisa dos bosques e das colinas,
da sombra das árvores e da natureza escondida
por onde sobem os esquilos, ressaltam as lebres
voam os pintassilgos.

o escritor de olhos oblíquos quando não escreve livros
também corre nas cidades.
sonha falar com os gatos que habitam as casas abandonadas
e todos os telhados;
contariam segredos, sementes de enredos
e o escritor pelas noites dentro, pelas manhãs fora
teria muitas letras e menos folhas brancas.

o escritor de olhos oblíquos diz que o mundo está torto
as cidades sabem a fumo e fogo
e são muitos os jardins habitados por casas.

já não se vêm tantos gatos -

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Aviso (poema de Sylvia Beirute)














AVISO


se tiver sintomas de poema, aguente,
não resgate o orgulho, guarde, quando falar
com os outros, uma distância
de, pelo menos, um metro,
fique em casa, não vá trabalhar, esqueça
rotinas graves, monólogos de rupturas,
a periferia de uma lição integral de intimidade,
não consulte o oráculo, des-
frequente-se a si mesmo, não vá à escola, evite
locais muito populosos e com densidades intrínsecas,
evite cumprimentar com abraços,
beijos, apertos de mão.
se tiver sintomas de poema, apenas informe
o silêncio, que ele saberá o que fazer:
esperará que o poema levante a cabeça
e o decapitará. sem uma palavra.

Sylvia Beirute
inédito

Nova, nova, nova, nova

Não era a minha alma que queria ter.
Esta alma já feita, com seu toque de sofrimento
e de resignação, sem pureza nem afoiteza.
Queria ter uma alma nova.
Decidida capaz de tudo ousar.
Nunca esta que tanto conheço, compassiva, torturada
de trazer por casa.
A alma que eu queria e devia ter...
Era uma alma asselvajada, impoluta, nova, nova,
nova, nova!

Irene Lisboa (Arruda dos Vinhos, 1892-1958)

Banquete

Encho os olhos de terra.
No Alentejo há muita e é de graça.
Dou-lhes esta fartura,
Antes que um só torrão, na sepultura,
Os cegue e satisfaça.

Monforte do Alentejo, 29 de Novembro de 1964.

Miguel Torga (S. Martinho de Anta, 1907-1995
in Antologia Poética 3ª ed. aumentada Coimbra

Sobre o conto e um abismo



Andy Warhol " Sem título" 1985


Não sei até que ponto os meus olhos são de vidro
Até que ponto abrem as margens e salgam os rios.
As palavras que lançaste naquele ringue
Deixaram-me a boca em sangue, os dentes todos partidos;
Pendurado numa corda, num pelourinho, condenado
Oscilante na ponte sem nunca chegar à água.
Porque é disso que se trata. O incumprimento do desejo:
Não atingiste nem foste o que era preciso, o impossível
A impossível realidade da psicanálise. Uma semente
Que se lança e cresce, e cresce, e cresce, e aumenta
Na procura do sol, no sabor dos nutrientes e depois não acontece.
Não acrescenta. Esmorece e definha como erva mole.
Sem frutos nem sumo. E eram tantos os caminhos.


Não sei até que ponto os meus olhos são de vidro
Um aquário onde circulam peixes vermelhos.
Ponho pregos demasiado pequenos nas tábuas.
E são frágeis de pedras ovais os muros fracos.
Porque é disso que se trata. A ambiguidade. Os limites.
A derrota dos silêncios nos passeios da cidade.
As almas paradas. As trindades e os sinos do desconforto.
O desejo. O desejo de um cimo do mundo, longe de tudo.
O cume. O cúmulo de um salto com a luz de “eureka”
E não ser mais proveta, a experiência repleta de problemas.

As palavras que lançaste são assassinas.
Nunca mas mesmo nunca se diz a um náufrago
Que está sózinho. Não tem amigos. Não tem família.
Porque é disso que se trata. De farpas que magoam.
Os espelhos não perdoam. São assassinos à solta
Em todas as esquinas. Os espelhos não perdoam.
Partem. Partem-se. Fragmentam-se em bocados.
Apagam as imagens. São como as noites escuras.
Sem lua, essa âncora que segura os barcos
Nem que cheios de buracos, sem remos
Virados ao contrário. A lua segura os sonhos.

E é disso que se trata, a impertinência de ser
De querer ser pássaro. Um pássaro parado nos telhados.
E porque voam os pássaros e depois param?
Nos telhados, nas agulhas dos pinheiros, nos cabelos
dos salgueiros, na resistência líquida das canas da Índia?
E porque param? E é disso que se trata. Para ouvir as águas?
Para interrogar o vento? Apenas o cansaço, o descanso
A procura de alimento? Para tornar diferentes os fins de tarde?
Essas brisas fortes de mudança? Vem aí a tempestade!

As palavras que lançaste foram uma camisa suja
de vinho e colarinhos sem graça. Lavei-a no rio.
Pendurei-a cheia de vincos (que nenhum ferro esmaga)
nos bicos dos pássaros. Doze, como horas marcadas
De um relógio. Enquanto seca, corro à volta do lago
E não vislumbro nos patos pequenos a diferença.
São todos iguais. Não há qualquer surpresa. Corro.
Corro como um louco. Fujo da sombra estendida.
Descalço. De pés estridentes no lodo. Corro.
Aquelas palavras nunca existiram. Um eco. Um eco
Medonho de uma peça de teatro. Um palco de Tchekov.
Que fala de mujiques e estalagens. Uma tragédia
Bolchevique, subterrânea e triste. Não existe.
Não existem mais palavras. E é disso que se trata.

Amanhã quero um canário de penas amarelas
Uma tela do tamanho de um palácio
E milhares de folhas brancas -

Sobre o caminho





Nada

nem o branco fogo do trigo
nem as agulhas cravadas na pupila dos pássaros
te dirão a palavra

Não interrogues não perguntes
entre a razão e a turbulência da neve
não há diferença

Não colecciones dejectos o teu destino és tu

Despe-te
não há outro caminho

Eugénio de Andrade, in "Véspera da Água"

Guarda-Rios


Este sangue é por te amar

João Aguardela


A ti devo a imagem fresca dos Guarda-rios da Lua,
que velam com os seus calções apertados, o leite gordo
que em cada cratera desagua, Obliquamente enrolam os seus cabelos
feitos de espera marítima e molham os pés no leite gordo que adormece,

trazem na lapela a sua enchada e na expressão o viso cansado,
dão doces sonhos à avó do guarda-discotecas, contam anedotas aos piratas,
apertam com todas as suas pontas tudo aquilo que acende e mata,

A ti devo a doçura de ser só coisa que pinga e prata queimada,
A fuga do Egipto, cada navio que parte, a ti devo as ninfas que jogam Playstation no fundo dos poços da lua, a ti devo o tudo e o nada,
O querer ser Só Coisa tua.


Nuno Brito

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

O Mar parece Azeite (poema de Sylvia Beirute)




















O MAR PARECE AZEITE


trago sinceridade no gozo e nas cenas definidas,
vivo no risco dos outros,
e por isso não sou feliz.
nada escondo nos poros das respostas.
nada me alcança do outro lado,
nada me sonha porque uma segunda adolescência
me não vaga uma angústia.
tudo sonho com psicologia quantitativa,
com o extravio propositado
de um silêncio que devora outro silêncio,
com o cultivo da nitidez
sobre a dogmática difusa de uma consciência
que gira sobre o seu eixo.
quero tirar-te todos os silêncios, meu auto-intruso
e caçador involuntário,
para entender a espessura deste acidente externo
de palavras
e ser transeunte no limite transfeito,
nas auto-promessas, tão frias de sentir e esquecer,
sem-tir e esque-cer, sentir-esquecer,
no meu infinito sustenido e directamente alheio.
hoje, às oito e quarenta, horário nobre, o mar
parece azeite,
transmudo o riso contabilístico e áspero, e
sou um miolo de frase feliz
na longinquidade que um estranho me reservaria.


Sylvia Beirute
inédito

domingo, 17 de janeiro de 2010

À beleza


Edward Hooper "Nu deitado" 1927


Não tens corpo, nem pátria, nem família,
Não te curvas ao jugo dos tiranos.
Não tens preço na terra dos humanos,
Nem o tempo te rói.
És a essência dos anos,
O que vem e o que foi.

És a carne dos deuses,
O sorriso das pedras,
E a candura do instinto.
És aquele alimento
De quem, farto de pão, anda faminto.

És a graça da vida em toda a parte,
Ou em arte,
Ou em simples verdade.
És o cravo vermelho,
Ou a moça no espelho,
Que depois de te ver se persuade.

És um verso perfeito
Que traz consigo a força do que diz.
És o jeito
Que tem, antes de mestre, o aprendiz.

És a beleza, enfim. És o teu nome.
Um milagre, uma luz, uma harmonia,
Uma linha sem traço...
Mas sem corpo, sem pátria e sem família,
Tudo repousa em paz no teu regaço.

Miguel Torga, in 'Odes'

Sunset Boullevard

Ode Gente*

………………………………………………………………………………………


O tempo, perverso em não existir, conjunto de limões em fuga,
com a sua saia de séculos, a masturbar-se lentamente,
A vir-se Em todas as direcções:
Depois mais rápido moldando a cara dos lavradores
Ofegante na sua vontade circular
Cilíndrico na espera – a subir o Chiado a descer o Chiado,
A entrar em cada casa, a passear na Afurada – a saber-se coisa-nada
ele
dá-te a mão, Espera,
Pinta frescos na sala, detiora os frescos da sala
tacteia nas tuas costas uma vontade nova, muda essa vontade
cria uma nova e uma nova e uma Nova
Escreve a lápis número 3 na sua sebenta:
“Este país não é para velhos” E masturba-se devagar e
depois Rápido: E adora Cláudio Magris e toda a Antena –
e acorda com Sebald e deita-se com Sebald, viola as filhas da revolução
e é manhã e insónia a entrar em todas as tabernas
a tingir de amarelo os calendários Michelin
a crucificar este, a encher de prazeres aquele, a masturbar-se
ciclicamente até ser só Vontade de ter passado:
Tempo-Cidade, tempo-cavalo, tempo-proletário,
tempo-homem, tempo-mulher, tempo camponês que dá a mão, tempo que escreve ensaios, tempo que canoniza –

Tempo que chora leite condensado para
cima da Sebenta, com o seu rosto quadriculado que é só medo e está passado –
………………………………………………………………………………………………………...
Tempo que é União e fala por nós, que tenta chorar mas só lhe sai musgo dos olhos, fresco e verde como o que cresce nas fontes de Raguzza, que dão uma água carregada de ferro (Resta-me a Sinceridade e a Saliva de todo o mundo)


***


O Tempo a cavalgar com Zaratrusta, trusta trusta,, a procurar um efeito sonoro nos seus versos: Em busca deste ou daquele recurso estilístico que dê profundidade à rima imperfeita – a Injectar no peito uma vontade nova, um Sol líquido entre dois seios que são também montanha, onde descansa o olhar –
vários olhos que vêm os estorninhos dançarem numa nuvem única, que parece uma cabeça de Medusa, em permanente mutação: Criando novas formas do cabelo, novas expressões no sorriso …………….. Uma nuvem única que faz amor consigo própria, como se fosse com um filho por cima dos Campos de Marte - uma nuvem-estorninho a acompanhar Grieg na subida e a acompanhar Grieg na descida: Nasceu uma Estrela com baton a mais –


A Torre de Babel, as torres do Aleixo
A torre latina que só espera,
a doçura do
teu queixo – À procura da T-mésis per-fei-ta
Um triângulo com as suas três pontas acesas, que bebe demais e tem medo de cair na entropia, um triângulo-cio com problemas de erecção.

É só doçura a torre latina que cai, Gémea do silêncio e da solidão;
A nossa língua não é esquecida: Evoluirá até à deformação perfeita –
O Tempo a acender todos os interruptores da Calábria, a fechar os olhos aos missionários que merecem o descanso: A dar-lhes um sentido porque todas as coisas devem ter sentido, seja ele único ou múltiplo: Seja ele cavalo, cidade-industrial, pastor alemão, vidro, sebenta, aguardente, erecção, uma viagem a Nova York, a Grécia Inteira; seja ele vento, microscópio, lixívia de marca branca, rebanho de ovelhas, medo do escuro, uma canção de amigo, uns olhos verdes e tristes – Seja ele, fazer obras num talho, mudar de instalações o sapateiro, o preço da gasolina, o preço do trigo, o que o colhe, ou o que o come…

***

Aqui não há espera: Come o teu queijo gordo e guarda que o teu lamento não seja eterno ………. Abre todas as janelas e deixa que o mar entre em tua casa – Nasceu do lodo, a simetria, a Vontade nova, em tudo nova; Não lhe quis dar um nome. Por superstição, deixei-a também flutuar como fumo de um cigarro que desaparece e é só instante. Deixei-o ir acordar os camionistas que seguem por estradas sem curvas, e precisam de dormir ……………………………… O que nos é estranho é adocicado e múltiplo, o que nos é estranho é o que Entra … Digo Entrar. Entrar Verdadeiramente::
Fomos alguém à janela com as suas pernas de cimento, fomos o pão negro que comia, um país na direcção do vento: O meu trabalho é partir diamante com a boca e encher de calmantes toda a Escócia e a gente austral. O meu país é só vento e aproxima o bem do mal: O meu país faz compotas de petróleo cristalizado, compotas de moral e de cimento que acordam os seus filhos pela manhã, compotas que indicam uma rota nova, que pedem boleia aos camionista, que têm medo de não passar bem a mensagem – É sua missão passá-la … Dizem - Bom dia! – A este e aquele que passa, que tiram o chapéu educadamente; Que abrem os seus corações aos estranhos nas estações de comboio. Compotas que desejam mesmo um bom dia, a este e aquele viajante e só esperam que a sua rota seja perfeita.


***

Espero que alguém se deite comigo, e não saiba já se está acordado ou a dormir e que a fronteira entre a vigília e o descanso seja só um novelo com que brinca um gato, em tudo exílio e olhos verdes, um gato negro que entra e sai das torres latinas. Um gato com o sonho Americano e a Dormir por si adentro.
Manter vivas todas as Frentes e velar para que nunca se apaguem – Calcar um triângulo de espera - gelatinoso como o cancro da mama - Um Triângulo que incomoda os séculos, um triângulo que minga quando as pessoas se abraçam: um triângulo que acorda e cavalga, um triângulo que sabe três línguas e assassina por trás. Um triângulo-Solidão.

***

Em métrica antiga abrimos todas as portas para que o rio passasse, negro e gorduroso no seu leito, a dizer que o país não se mete em sarilhos, em cada esquina um tétrico coro canta. Em cada esquina essa perda de cabelos dourados, wireless latino e agudo, entra em todos os jardins, come os teus figos maduros, Quê?
Com uma flor na lapela que é o seu lamento,
A criar estilos, a passear o cão, a ouvir o concelho de todos, a dançar regeton

O Tempo a ouvir Sitiados
A talhar a pedra - a ser já só pedra e dados
a construir sólidos telhados num labirinto guloso

……………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………….

O Coro tétrico canta:

Tudo é febre e mudança
Panteão e virilha a arder,
Tudo é promessa líquida que muda,
e manequim a ferver

Tudo é perspectiva múltipla e
nos exige a atenção,
Tudo é língua, tudo boca ,
Ode como um cão!

Esculpe-me o cabelo, o sexo e o antebraço,
Recheia de chocolate os ouriços do mar, Dá-me a solução num único abraço,

Adoça e esculpe-me os limites: Faz deles, nenhum.

*******

Acende um Farol em cada praia. Não esperes os navios. Entra em todos os seus porões sem aviso - Recheia os capitães de Susto – Enche os Porões de riso e espasmo… Penteia-os com gel de golfinho. Sempre estive perto da loucura, se não fui ela própria, sempre quis ter bigodes púrpura e ser só a chuva lá fora –

Nunca quis ser um poeta, só quis ser um navio em chamas: Um navio violado pelo seu tio, todas as manhãs e todas as tardes, um navio que há noite lê Bataille - Um Navio que se afasta dos outros navios se não tiver cuidado, um navio que só quer ser ponte, limite e União. Um navio que com os seus óculos de Sol, escreve na sua rota: - Não existe o que se escreve nas rotas -
Um navio que mesmo assim escreve e insiste em escrever, seja no osso de uma namorada morta, seja no computador, seja em rolo de papiro, em pergaminho, em papel, em folha de gelatina, em mármore, em porta de casa de banho, em quadro (pode ser com unhas ou com dentes) em areia molhada, no braço em tatuagem, nas costas em tatuagem, num deserto mexicano, num campo relvado, a chantilly num bolo de chocolate, no lodo, na lama, no gelo com patins, na cerâmica, na argila, no fogo, desenhando um rasto de gasolina, com urina num ladrilho seco – Não interessa o suporte, mais ou menos perene, ele só prova a nossa inocência, a nossa necessidade de partilhar - A literatura, só pode ser União …………… Um navio que escreve rápido no ar e em fumo de cigarro (são precisos bons reflexos e ante-braço forte) – A Literatura tem de ser União –

Nunca quis ser um poeta, sempre quis ser um espelho colocado no centro da Austrália, sempre quis ser a “fome de gente” que os espelhos têm - Pequenos fios dourados, Guardar uma coisa qualquer, um hipermercado, um segredo, proteger essa coisa dos lobos; Ser vários cangurus espalhados pelo deserto reflectidos na minha cara fosca, de um e do outro lado, uma cara fosca que é só deserto espelhado carregado de nuvens vermelhas no vidro e na sede de ter Muitas Línguas - Deserto Compositor a Criar um Requiem em Braille para que os cegos cantem uma Osana Perfeita – Para que os cegos a vejam multiforme a Afastar todas as nuvens carregadas – Para que a Fuga seja só ficar – Deserto a vestir as suas cuequitas com motivos ursinhos, a olhar para mim, espelho que não dorme porque abre todas as gavetas, todas as vontades para tirar de lá meias de licra – Sou só a vontade dos teus olhos. A Escócia a abrir trincheiras cor de rosa, África a sonhar com um incesto – Em tudo Maior –
A calçar as All-Stars - A jogar playstaition com a boca cheia de limão* Deserto a cavalgar a abrir portas – Não interessa a escolha do caminho, mas a intensidade com que se o percorre, seja ele um ou em tudo múltiplo e comprido. Deserto a abraçar deserto, deserto a espalhar-se vermelho na perda por deserto e deserto, deserto com sede de pessoas.

………………………………………………………………………………………………………...
Nunca quis ser um deserto, sempre quis ser um espelho ou um conjunto de limões _ Se fosse uma mulher, paria um espelho de espuma – Sei que a espera é o próprio Inferno, senão o Diabo Inteiro, sou o arquitecto de um labirinto:

Comer o labirinto
Sair
Ficar dentro – O Arquitecto é uma sombra e quer-se perder e espalhar pela praia ao fim da tarde, Criar a Sua Perda, um labirinto doce com muros que são folhas de gelatina, um arquitecto que só te quer a ti, todas as saídas e todas as entradas. A mais doce ária que é o azeite negro a escorrer pela boca de um paralítico. Esculpe-me o cabelo, o sexo, o antebraço, dá-me um abraço triplo, tira-me todo o ar, dá-me todo o Ar:
A noite com as suas cuequitas apertadas uiva por Maiakovsky
a língua da noite adormece os pescadores
Gosto de te ver sorrir*

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O Riso é o Gerador Único do Universo,
só ele, quando, tudo o resto falha, permite que as estrelas,
(infanticidas por natureza), se mantenham vivas e não cortem as suas pontas,
Que as ligações frágeis, não percam vida e se extingam até à anorexia, perdendo luz e força,
ou se arrebentem por dentro sobre o seu próprio eixo desatinado (desatinando para aqui e para ali) Só o Riso é Deus, só ele cavalga e Molda verdadeiramente as caras,
só ele cria luz e espelhos de espuma, só ele goza a poesia, só ele fica sozinho, só ele dá vida.
Quem escreve “O Fim da História”, mais não faz do que a começar. Sou um recurso estilístico a olhar-se ao espelho, a beber chá verde pela manhã, a empapar o cabelo em gel …

Sou a vontade, em tudo malhada, de te ver sorrir*
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Lambi o sexo a um relâmpago de virilhas acesas
os seus pintelhos tornaram-me a boca da cor do azeite,
alguns engoli e escorri para os pulmões, vi o relâmpago a lavar os dentes e a cair por cima de uma biblioteca

a literatura (a primeira morte) só serve para unir – os fios que usa são dourados,
é também dourada a sua paciência e a sua vontade de conhecer o inferno.



Ode em mutação, poema recheado de vento, poema que cavalga e é lusitano - Que é só sede e é só vento, (vontade de rir de tudo) - Poema em rima cruzada a atravessar todos os rios, relâmpago a guiar numa auto-estrada em direcção ao sul – Poema a ouvir Belle Chase Hotel com a boca cheia de cerejas negras – Ode que canta um país que não quer amanhecer, e que é brisa e triste lamento, poema que é olhos teus e se alimenta de riso. Ode cão Ode cimento.

Sempre quis ser uma cidade industrial escocesa que Turner não conseguiu pintar, sempre quis ser o acordar dos operários, que calçam as suas ceroulas, afastam o medo (Criação Absoluta e único Motor de tudo) Todos os mails não enviados que recheiam a Rede de pontas gelatinosas e fazem explodir as estrelas – De tudo o que deve ser dito com o palato aceso.
Ode Gente, Ode canção
Ode lixívia que limpa uma campa
Ode-saia e alexandrina na rima, ode com dentes podres
viciada em cocaína – Ode Gente dentro de Gente, Ode cantina,

Ode canção, perfeita no gesto – Ode hospedeira da Easy jet, Ode-gente que chove, Ode-Nuvem que tapa e destapa as cidades Belgas, Ode a abrir os frascos de mel todos, a meter-te pirilampos nos cabelos, a acender de escuridão a noite – Ode que chora quando morre o seu amigo, Ode que brilha quando morre – O Mundo começou agora e já está na sua varanda de Susto uma rapariga com a sua saia carregada de vermelho – Ode Saída a encher os pulmões de relâmpagos - Um país Ocidental que nasceu numa paralítica dança em construção.

Ode tinta num copo de espasmos, Ode de boca ao lado que precisa de um amigo,
perversa na fuga e na chegada



- O amor é como carne …


Nuno Brito

sábado, 16 de janeiro de 2010

A poética de Beethoven



Um auditório com um piano grande
De cauda , ligeiramente em cima, inclinada
E rodas de carrinhos de chá tão pequenas
Que devem ter durezas de diamantes
Para segurar as cordas, as madeiras nobres
A elegância das notas pesadas e longas
E a brilhante cor dourada dos metais.

O programa de uma única folha fala em Beethoven
Anuncia um rosto jovem na fotografia.
Quando entra o artista comenta-se a semelhança
Estica-se a fisionomia e adivinha-se a idade;
Se é moderna ou já antiga a referida fotografia.
Coincide. Tem três dias. Quatro no máximo.
Julgo que está a usar a mesma camisa.

O artista, o programa, a mesma camisa
A pose característica, em frente ao piano
A mão pousada sobre uma aresta azeviche
A vénia, as palmas, sem pressas, lentamente.

Quando há uma casaca de grilo, mais um gesto
Aquele que atira asas inuteis em bico
Para o lugar que escuta o ruído de tábuas,
A acústica de um ranger mal apertado.
Não é o caso. As calças pretas, os sapatos
Na cor de verniz dos casamentos, os dedos
Longos , embora os haja mais pequenos
Não é atributo indispensável. Os dedos
Compridos de articulações notórias
em leves estalidos de acomodação.

O piano de cauda preta, inclinada e
E os dedos leves como folhas na natureza
Ao vento, horizontais, descendo em fragmentos
De linhas e pontos de bússola e cardeais.

A sinfonia de Beethoven “A Patética”
Um nome incómodo sem origem
Pelo menos que eu saiba. Patético
Pateta, porque não “A Poética”
Não soa mais condizente?

Os braços começam de ângulo recto
E as mãos como aves voam , duplificam
O prazer de um intervalo antes de uma nota
A nova nota que intensifica o acto
De pousar no marfim branco e levantar
De novo, o voo e o silêncio e o braço
Em voo , e os meus olhos seguindo
O voo, o voo das aves, dos dedos
Da música de uma sinfonia “Poética”.

Um piano, de cordas, de cauda
E aquele plano do artista que vibra
Que me toca alma, naquela nota
Como um cupido de arco e seta
Naquela morte boa da “Poética”
Uma seta de cordas, a dor no peito
Aquele desfazer por dentro.

Lembro-me do outro filme e um quadro:
Uma sala luminosa e branca
Um rádio com algum solavanco
De ondas ténues, ruídos hertzianos,
Ruídos, a porta fechada. Um ecrã.
Um piano grande. Nós a um canto.
Observando Igor no paraíso de Paris
Que tem um olhar penetrante
Magnânimo, e se perde, perde-se de doçura:
Um doce de coco no aroma de Chanel.

Sacrilégio concerteza.Que pensamentos.
O artista deslizava nas escalas
Na primeira, na oitava, de ar lânguido
Naquela camisa branca, como se fosse fácil
E ainda essa tarde corria desvairado pela casa:
“Ainda não está bem! Que desgraça!
Vai lá estar o maestro, a professora, a D. Teresa
A Manuela, o professor, a Antena 2, o gravador!”
Digo eu. Assim o percebi ! Depois de Beethoven
Depois do Kachaturian, um ar tanto livre.
Falava. Não era só mãos.
O antigo aperto fluía em círculo
Em movimento centrípeto no fim do concerto.
O artista agradecia. As palmas ouviam-se.

As plateias nem sempre estão de acordo
Levanta, não levanta, pousa o casaco, o programa
Bravô, bravô, há sempre uma voz rouca.
Um encore, dois encores ou tantos? Bravô
Bravô, a mesma voz rouca. Acabou. Vamos.

Mas o sacrilégio não abandona. Nós a um canto.
Um centro. Um piano grande e as mãos deslizando.
A sagração da primavera em pleno Inverno
A sinfonia Poética. A imagem de Stravinsky
O perfume nº 5 -

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Amor na frigideira

Reconheço esse teu andar divagante
em fatias miudinhas.

Esse teu refogar vulcânico,
em fogo quente e azeite abundante.

Esse teu perfume basilico, made in Italy.

Uma pitada de sal e derreto-me.
Uma invocação de toque e
aloiro vontades.

Anseio por um copo de vinho branco,
seco.
Ficar bem macio.
Descascar-me.

Anseio por uma colherada de pau
Colher-te
de pé
Comer-te.

Anseio polvilhar-te.
Verte-me em ti,
às postas.

Havemos de trocar revoluções em barra,
testar habilidades balsâmicas,
marinar pele na pele, em lume brando.

Havemos de levantar fervura,
explodir a carne apurada,
untada,
suada.

Havemos de cozinhar probabilidades,
(em 5 decilitros de qualquer coisa),
á deriva com manteiga inexperiente
e arroz bem solto.

Havemos esmorecer condimentos.
Esquecer o confeccionado.
Arrefecer,
até engrossar.

Havemos de concluir que
o amor é uma cebolada.

O robalo





O acaso predomina por volta do meio-dia
hora indistinta de refeição matutina.
Um restaurante vazio. Os últimos talheres
e a mesa ao fundo de chapéus de cozinha,
aventais de bolsos largos, alças limpas;
o último descanso antes de mais um dia.

Apenas meia-hora e chegam as formigas
e algumas cigarras que falam, falam, falam
pelas mãos, pelos cabelos em desassossego.
Um robalo, filetes de pescada, coelho estufado.
Aguardam pacientes as iguarias;
arrefecidas, sózinhas; se tivessem lágrimas
talvez usar toalhas em vez de guardanapos.

Vem a propósito a mesa contígua:
“ Não imaginas o sufoco, o frio, o jeep
um continente de filamentos brancos
uma paisagem de névoas, muitas e finas
como se nem céu nem estrelas
que cintilam, salvam e iluminam.
Tan-tan-tan e nada, avariado o abominável
e nós parados, a despedir vida
na fúria que consumia o convite:
Gostas de neve? Que tal as montanhas da Suíça?
Que frio. Que frio. Que frio. Não imaginas.
No infinito. Tanta sede. Tanto gelo.
Água! Dêem-me água! Não! Não! Whiskie!
Uma garrafinha térmica de boca pequenina!
Que frio. Não imaginas!
E ele! Impávido olhando o carro!
O túmulo! O parvo! Como se aquela lata
fosse um filho fraco que precisa de cuidado.
Ser corrigido. Que raiva! Que desvario!
Dois pontapés assentes nas rodelas de borracha.
Maldito jeep!”


Coloquei auricular ao fazer de conta, inventar:
“Sim! Claro! Naturalmente! Em Santa Catarina.
Os documentos. O B.I. , o número do contribuinte.”
O ar alheado de quem nem ali está
pedindo por fim laranja, doce em fatias.
Mas no fundo a voz de rapina, inaudível:
“Não parem. Vá lá. Faço-me pequenino.
Pego num livro. Continuem as fantasias.”

Na mesa contígua, ali ao lado:
“Bem te disse! Fim de ano decente
pede pedras de granito e uma lareira
a alegria em casa dos amigos;
os corridinhos, os sambinhas, palavras soltas
disparos de rolhas de cortiça
enquanto há pés de dança e energia.
Desta dita durou até às tantas
quando a lua bocejou, abriu os braços
teve preguiça – deitou a noite subiu o dia.”

Doze gramas de açúcar não é bom para a glicose
mas depois de me obrigarem na longínqua Inglaterra
prazeres de café amargo, gosto dele muito doce.

Na mesa contígua, ali ao lado
um prato vazio, não há restos
apenas faca e garfo, encostados
e o guardanapo abandonado.
Do outro o robalo, vestido de Inverno
de soslaio, olhar de vidro, prateado
resiste.

“ Não consigo! Não quero! Faz-me lembrar o frio.
Que frio! Que frio! Não imaginas!”

Levanto-me. A conversa pára.
Cá fora assobio e sinto quente a alma
mas arrasto de surpresa os pés frios
como se dois cubos de gelo...

Deslizo e medito:
“Queres ver que o robalo...”-

Dobrada à moda do Porto

Na sequência de um desafio lançado aos antigos participantes nos cursos de escrita criativa em poesia com a poetisa Ana Luísa Amaral surgiram vários poemas da autoria dos participantes e de alguns poetas por demais conhecidos. O tema proposto era sobre algo que se associasse a culinária ou alimentação. Como exemplo foi lembrado o poema do heterónimo de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, "Dobrada à moda do Porto":



Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo...
(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei multo bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).

Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.

Álvaro de Campos

( Na sequência deste surgiu o já publicado "Chávena de chá" de José Almeida da Silva e outros que vão ser publicados)

Chávena de chá

Sublime a chávena de chá deste fim de tarde.
Surgiu dela a tua imagem de menina. O chá
Não estava forte. Não estava. Chamemos-lhe
Afecto ou tisana. De facto tornou-se um momento
De quente harmonia. Vi-o reflectido nos teus olhos
E na indómita vontade que me invadiu de ficar assim
Contigo para sempre. O bem-estar é doce e líquido
Como o sangue – fonte de vida sem sobressaltos –
Em que é dual a liberdade. E estou certo. Sim, estou
Certo de que a tisana ou o afecto deste fim de tarde
Inscreveu em nós sossegadamente a eternidade.
(03.02.007)
José Almeida da Silva

Fora e dentro

Lá fora os relâmpagos iluminavam
A escuridão das ruas e o medo
Dos trovões e os raros transeuntes,
Os automóveis moviam-se a custo,
E a chuva transformava a cidade
Em rios de lama e mares de aflição.

Cá dentro a amizade destilava-se
Em conversas, unia os poetas à mesa
Dava lugar à memória longínqua
E próxima da poesia e dos poetas
E as provas tipográficas de toda
A poesia da poeta maior – 500 páginas –

Ali sobre a mesa e ainda dois livros
Que não vieram jantar, mas vão chegar
À gráfica e depois aos ávidos leitores.
Urdiram-se encontros mensalmente
– Não pode perder-se o hábito
Da reunião salutar da poesia –

Da Mestra e dos discípulos –
Aprender pede uma eternidade
Só assim se tece a liberdade
E se derrubam fronteiras
E as pulseiras com que as normas
Destinam o destino e o caminho.

[Uma pinga na mesa entrelaçava
O fora e o dentro e o momento.]

Leça da Palmeira – à beira-mar – é lugar
De ventos por achar. É lá que vive
Em memória o Nobre António
Do lado de lá da Casa de Chá
Desenhada por Siza, o Arquitecto.
E no interior da marítima cidade,

Junto à Igreja Matriz, repousa o Poeta.
Vive Só como sempre se sonhou
No meio de lembranças e saudades
Sem esperanças de voltar à Torre
De Anto. Os seus versos, um espanto.
Só desassossegos e lamentações.

Lá fora, sem dó, cai chuva a rodos,
Continua o vendaval em liberdade.
Era melhor a chuva de molha todos,
Saíamos para a rua e colhíamos Poesia
E se fosse início de Setembro engordava
As uvas – néctar de deuses e da alegria.

Cá dentro o relógio empurrava-nos para fora.
Saímos mesmo assim, aberto o guarda-chuva.
Os carros estavam longe. Veloz, o vento soprava
Rajadas fortes, indiscretas. E a casa lá longe
– Um paraíso ao alcance de uns quilómetros,
Simples versos, inscritos num recanto do presente.
(02.01.2010)
José Almeida da Silva

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Império (poema de Sylvia Beirute)




















IMPÉRIO


posso exigir apenas até à hesitação.
hesitação.
hesitação que externa uma abertura
que externa uma condição.
uma condição que externa uma verificabilidade
condicionada.
uma compulsão que consome para não
multiplicar.
multiplicação. primeira multiplicação.
segunda. terceira. infinita. imperativa.
{todo o infinito tem imperatividade
ou império}.
prossecução. calculador da cegueira
das estrelas. reinício. poderei
exigir-te, recordo, apenas até à hesitação.
a hesitação está muito antes do mundo
e o maior paradoxo
é procurar-me a mim mesma
e o sangue ficar do meu lado.

Sylvia Beirute
inédito

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Domingo no campo




Aos domingos, quando os sinos tocam
de manhã, o que neles se toca é a manhã,
e todas as manhãs que nessa manhã
se juntam, com os dias da infância que
nunca mais acabavam, as casas da aldeia
de portas abertas para quem passava,
as ruas de terra batida onde as carroças
traziam as coisas do campo, os cães que
corriam atrás delas, uma crença no sol
que parecia ter expulso todas as nuvens
do céu, e a eternidade desses domingos
que ficaram na memória, com o ressoar
dos sinos pelos campos para que todos
soubessem que era domingo, e não havia
domingo sem os sinos tocarem a lembrar,
a cada badalada, que os domingos não
são eternos, e que é preciso viver cada
domingo como se fosse o primeiro, para
que o toque dos sinos não dobre por
quem não sabe que é domingo.

Nuno Júdice

domingo, 10 de janeiro de 2010

Poema de Domingo



Aos domingos as ruas estão desertas
e parecem mais largas.
Ausentaram-se os homens à procura
de outros novos cansaços que os descansem.
Seu livre arbítrio alegremente os força
a fazerem o mesmo que fizeram
os outros que foram fazer o que eles fazem.
E assim as ruas ficaram mais largas,
o ar mais limpo, o sol mais descoberto.
Ficaram os bêbados com mais espaço para trocarem as pernas
e espetarem o ventre e alargarem os braços
no amplexo de amor que só eles conhecem.
O olhar aberto às largas perspectivas
difunde-se e trespassa
os sucessivos, transparentes planos.

Um cão vadio sem pressas e sem medos
fareja o contentor tombado no passeio.


É domingo.
E aos domingos as árvores crescem na cidade,
e os pássaros, julgando-se no campo, desfazem-se a cantar empoleirados nelas.
Tudo volta ao princípio.
E ao princípio o lixo do contentor cheira ao estrume das vacas
e o asfalto da rua corre sem sobressaltos por entre as pedras
levando consigo a imagem das flores amarelas do tojo,
enquanto o transeunte,
no deslumbramento do encontro inesperado,
eleva a mão e acena
para o passeio fronteiro onde não vai ninguém.


António Gedeão, "Novos Poemas Póstumos", 1990, in Poesia Completa, Lisboa

Povoar-te de rosas




Guardo de ti a mais bela imagem: a fotografia
que povoa os meus sentidos.

Nem que suba à mais alta montanha
nos dias mais frios
todos os gelos serão derretidos.

Não há lugar a vapores ténues nem silêncios
negarei hoje e sempre todas as ausências;
pois se nos versos escrevo sonhos
se nos quartos das luas admito cores
é porque sinto;

povoar-te de rosas faz todo o sentido

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

A propósito de uma dança de vagalumes




A aragem fina de Inverno ruboriza
de vapor incauto, incólume de sal
que se liberta no estado alucinado
sobrenatural.

O cais das letras, dissolvidas e ternas
sem a falsa consistência de serem muitas
e serem longas
repetem a doença, a bem querença
em muitas folhas de papel.

À vista, sem opacidades, no seu quarto
aprisionado no espelho de todos os mares
sobe as águas de golfinho.

Cristalino na cor do vidro
estende o corpo nu e a alma aberta
por sobre a manta dos quadrados
espera os versos, sonha-se poeta
sem ser jovem nem azteca.

Eis então surgem as luzes,
as danças e os brilhos
os brilhos dos vagalumes.

Por fim pode dormir, renascido
soprando cinzas.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Espelho




Que rompam as águas:
é de um corpo que falo.

Nunca tive outra pátria,
nem outro espelho;
nunca tive outra casa.

É de um rio que falo;
desta margem onde soam ainda,
leves,
umas sandálias de oiro e de ternura.

Aqui moram as palavras;
as mais antigas,
as mais recentes:
mãe, árvore,
adro, amigo.

Aqui conheci o desejo
mais sombrio, mais luminoso;
a boca
onde nasce o sol,
onde nasce a lua.

E sempre um corpo,
sempre um rio;
corpos ou ecos de colunas,
rios ou súbitas janelas
sobre dunas;
corpos:
dóceis, doirados montes de feno;
rios;
frágeis, frias flores de cristal.

E tudo era água,
água,
desejo só
de um pequeno charco de luz.

De luz?
Que sabemos nós
dessas nuvens altas,
dessas agulhas
nuas
onde o silêncio se esconde?
Desses olhos redondos,
agudos de verão,
e tão azuis
como se fossem beijos?

Um corpo amei;
um corpo, um rio;
um pequeno tigre de inocência
com lágrimas
esquecidas nos ombros,
gritos
adormecidos nas pernas,
com extensas,
arrefecidas
primaveras nas mãos.

Quem não amou
assim? Quem não amou?
Quem?
Quem não amou
está morto.

Piedade,
também eu sou mortal.
Piedade,
por um lenço de linho
debruado de feroz melancolia,
por uma haste de espinheiro
atirada contra o muro,
por uma voz que tropeça
e não alcança os ramos.

De um corpo falei:
que rompam as águas.

A noite continua



Lobos cinzentos de olhos atentos.
Em repouso. São mansos. Não abrem os dentes
não procuram a cor do vinho.
Nos contos infantis um cavalo coragem
e um cenário de frio
enquanto a coruja escuta os sons da noite.
Mas os lobos são mansos
e sopram, de lábios quentes.

Subtil, no escuro, subsiste um aroma de absinto
apesar de longínquo. A noite continua.

- assim desce a lua.

Coisas que acontecem aos 32 e a todos

Colegas de pó e azia,

Faço hoje anos, às sete e meia da manhã.
À 1h58 o meu cérebro iniciou um processo de metamorfose em couve flor. Sem dor.
Não tenho médico de família, apesar de ter já preenchido uma reclamação no Centro de Saúde da Batalha.
Podem recomendar-me especialista sem lista?
Agradeço que não seja uma zebra.

Obrigada,
Ana Janeiro

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Distância de Oceano




Quando observo as ondas do mar
sinto-te perto.
A distância de Oceano torna-se pequena.
Aquela gaivota sobre a rocha no andar alto
será que andou de cacilheiro?
Viria esta tarde, a esta hora. Disse-te.
Repetimos de Norte a Sul
o paralelismo dos rios
o paralelismo do olhar
e o moleskine no bolso lateral.
De Norte a Sul
o testemunho de palavras, de sentir
que segue a praia, as encostas do mar.
Se na rosa-dos-ventos
cada um procurasse o centro
a trezentos quilómetros de distância
cruzar-se-iam na velocidade da luz
as quatro pupilas de infinita paciência.

Nas tuas letras fico por vezes preocupado.
Porque te encantam os pássaros de asas negras?
Porque colocas nos lábios as espadas, as cabeças cortadas
e esses estranhos lugares onde voam mortes?
Dizes medo? Dizes medo de não ser?
Medo de não ser alegre? Medo de não ser alegre o dia?
Os dias? Faremos alegres os dias.

Sinto nas linhas de comboio a passsagem nas salinas.
O mesmo céu de permeio. Sinto-te. Sinto-te nas brisas.

A metamorfose é um desejo. A possibilidade de ser pequeno,
de ter penas castanhas e o voo confuso dos pardais
no balanço dos ramos, na folhagem da amoreira,
no castanheiro do largo da aldeia.
Foi ali de férias grandes que tudo começou.
A aldeia. Os sinos da igreja. O trinado das badaladas:
É fogo! Foi o pastor! Para o lado das montanhas!

Trinta anos e agora essa distância.
A distância dos romances, dos livros de poesia.
As miragens, os projectos e esses caminhos
que tornámos insurrectos.
Querias ser médica. Quem diria.
Eu. Eu queria outros caminhos.
A lua, as asas de tocar as outras mentes.


E agora a distância. A distância de Oceano
e a impressão de que sempre que junto tábuas
algo falta,
algo falta na construção da jangada -

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Cambiantes de luz na lisura da tarde


Diego Rivera 1944

Quando se ergue o silêncio na janela sobre o jardim
raras vezes acontece ver nela o lugar parado das flores.
Ergue-se o movimento de alguém que sei e sabe
o aroma das rosas, o lugar por abrir de camélias.
As geometrias e os recantos inamoviveis
permanecem de indícios e aqueles sinais.
Os sinais de amarelo, laranja e vermelho
de foguetes não de fim mas de novo ano.

Água pródiga na semana que passou
de revolta na paternidade de um céu cinzento
mas mesmo assim ergue-se a espaços o silêncio
na janela mais próxima sobre o jardim
e até os raios teimam por momentos
nos desenhos em movimento de oriente.

Suponho no beiral circunspecto a luz
na proximidade de ondas de inverno
e planeio as mesas de chapa molhadas
e no afago de um café o entendimento
de quais e quantas as ondas puras de sal
ou de mistura mais doce na foz, no mar.
Mais tarde, não muito, porque hoje é sábado.

Se não tivesse parado a chuva
se não se mexessem as nuvens
nada disto ocorreria, mas o jardim
lembra no silêncio, nítida e sensual
alguém que sei e sabe
das pétalas pequenas do jasmim
que se ergue junto à pedra natural.

Levanto um pouco a janela
na surpresa da imagem mesmo como
se quando Newton e a maçã
ao descobrir o postulado escondido
ao colocar no quadro irreal o desejo
de ser alguém que sei e sabe
em voltas de chapéu largo e um pequeno regador
na roda de vasos e rebentos, de bolbos e lamentos
de um tempo, demasiado húmido, demasiado quente
e não propício aos cultivos e aos novos nascimentos.

A imagem permanece na elegia de rumores de folhas
a homenagem nos sussurros sem leitura de anjos invisíveis;
um discurso de símbolos e muitas saídas
sem qualquer garantia, portas e paredes num labirinto
que se ergue na tarde, na janela aberta, no jardim.

Revisito o silêncio e os rascunhos guardados
de alguém que sei e sabe do lugar dos alicerces
de castelos de essências, sem gravidade suspensos
por sobre um crescente fértil de imagens e poemas.

Fecho a janela.
Vou até ao mar porque hoje é sábado
Ergue-se o sol.
Nos cambiantes de luz e água deve haver prata no areal.