quarta-feira, 30 de junho de 2010

Amor 1.

A metafísica do amor são as tuas mãos
O amor não tem nome
É um pó líquido que nos corre nas artérias
Em estado puro
Um nó sináptico que nos enrola o cérebro
Em circunvoluções frontais e fatais

O amor tem dois dias para nascer
Três para morrer e um para ressuscitar
O amor são só números e operações
Somar, multiplicar, subtrair, dividir
A génese é um paradoxo
Maior que o do amor
Que nem interessa à génese

Nasce mesmo sem amor
Para logo morrer em vida sem afecto
O amor é um objecto inútil
Dispensável à biologia
Ainda assim é a sua elevação
A materialização das estrelas na carne

A metafísica do amor são as tuas mãos
O amor tem dois dias para nascer
Nesta sociedade cega e robotizada
O trabalho é um paradoxo
Menor que o do amor
Que nem interessa à génese
O trabalho é um objecto inútil
Dispensável à biologia

Se chovessem estrelas
Se o amor fosse água
Se eu criasse sol
A terra não era mais redonda
Nadávamos em amor sob a chuva
Os nossos beijos eram luz
E caminhávamos em linha recta
da Terra a Vénus e Marte

Talvez aí o amor não fosse dispensável à biologia
E os cometas fossem os nossos sonhos
A voar perto da memória da chuva
A embalar-nos em braços de luz.

Pecado ao quadrado

quadrado
recto de lados e princípios
rígido e perfeito na forma
(en)quadrado em si
preso num quadro quadrado

uma equação perfeita
com resultado impossível
uma curva normal
sem desvio-padrão

traçado a régua e esquadro
ângulos de noventa graus
és traçado sem pecado
sem curva nem diversão

peca em círculos
faz a roda
rebola em esfera sem rumo
desdobra a aresta toda
corrompe-te nos decimais
sem resto certo
sem divisão
só riscos tortos
feitos à mão

beijos redondos
em equação
eu a dividir por tu dá nus
subtraindo nós de ti dá nó

peca circunferencialmente
em ângulos imperfeitos, obtusos e agudos
desenha números na pele
sem borracha
não apagues nada...
os rascunhos são perfeitos.

Talvez

Peca a terra
Peca a terra
Peca a terra
Peca a terra

Quero sair do comboio
Que vem e vai em pecado

Peca a terra
Peca a terra
Peca a terra
Peca a terra

O planeta azul
Pecou com o astro sol
Seu fruto é todo pecado
De nome Homem

Peca a terra
Peca a terra
Peca a terra

Peca
Peca
Peca
Só mais uma vez
Para seres humano
Só mais uma vez
Até seres humano

Peca incessantemente
Até o sol raiar
O sol dorme de noite
com a terra em leito mar

Peca até entenderes
Que pecar não é pecado
Que pecar é a virtude
De quem vive ocupado
A colocar forca pesada
Em seu pescoço docemente
Com mãos próprias
Mãos do mundo
Este peca impunemente
Ao assistir à punição
Gozando a justa pena
É sua própria prisão

Peca peca peca
Peca só mais uma vez
Até seres humano
Até só o talvez bastar
talvez

Pecado

Se pecar fosse pecado
Teria condenação
Se pecar não fosse apenas
A humana condição
Se o homem não se julgasse
A si de dentro de si
Ao outro de fora para dentro
Ao outro por fora de si

Haveria então pecado
Se não pudéssemos pensar?
Haveria então pecado
Se não pudéssemos julgar?

Se pecar fosse pecado
Eu não saberia pecar
Assim peco a toda hora
Ao agir e ao pensar
Peco em cada julgamento
Em cada interrogação
Peco tanto a toda hora
Peco com e sem razão

Se em vez de bomba de sangue
Fosse teu meu coração
Era máquina de pecado
A turvar-me a vã razão

Ao ver-te assim já pequei
Ao ter-te pequei também
Pequei quando te beijei
Peco em ser tua refém

Haverá maior pecado
Do que amar sem ter razão?
Não será então pecado
Sinónimo de prisão?

Ou será amar assim
Só uma cega paixão?
Disfarçada de pureza
É no fundo possessão

Já que o verdadeiro amor
é livre na sua verdade
Já que acreditar em pecado
É sentir culpabilidade

Deixo aqui minha veste
De pecado e de vaidade
Fico nua só de amor
Inundada em liberdade.

É segredo

Peço o teu pecado
Peco que o já disse
Peço que o já sinto
Peco em ter pensado

Este meu segredo
Em mim tão bem guardado
É grande, é um gigante
É imenso, é pecado

Se agora to contasse
Em jeito de tratado
Mais de mil horas lias
Com rosto de espantado
Até de mim fugias
Com tamanho pecado

Peço que não o contes
Peco em ter-te contado
Foi mais do que devia
Foi tão precipitado

Pois quando é contado
Pecado bem guardado
Torna-se em julgamento
Fica desvirtuado

Assim segue pecando
em segredo humanamente
Que o verdadeiro pecado
É só por ti condenado
Tormento em ti é julgado
Cúmplice em ti e por ti
Desdobra-se velhas memórias
Até ser só passado.

adolescente retardado


Paul Klee " a cidade do sonho " 1921

fala-me de serras e de pastores, de campos largos
de outras humanidades que não as vulgares
assim como uma espécie de libertação
de ser obrigatório ler os jornais
de mergulhar nas complexidades existenciais
de telefonar sem fios, de correr e correr
correr muitos riscos para encontrar paredes planas
paredes moucas como objectos contemplativos.

fala-me de serras e de pastores não no sentido de sacrifício
como amplitude de saber: que uns são felizes e balem
se forem ricos e diversos os pastos durante o dia
quentes as palhas na recolha de luas e lãs crescidas.
que um abana a cauda por ser a sua causa cuidar do rebanho
para que não se perca e fuja ao perigo
da sábia raposa, do falso lobo.
e por fim o outro, aéreo e louco a escutar as aves
de capote em roda a ler a sombra das árvores
a erguer-se no cajado. abrir os braços.

e não me ouves queres que seja depressa
como um jovem atleta a devorar o guiness
a empurrar o mundo na ponta da seta
não lhe dar o descanso de um buraco negro;
ser um cumpridor progamado de tarefas
a voz de um computador numa odisseia no espaço
o poderoso decisor de apertar o botão vermelho
o ultrarápido corredor de tudo ou nada
de sangue e lágrima.

talvez seja verdade e as mulheres tantas vezes
são tão práticas. mas sou poeta sabes.
ilude-me como se gostasses das minhas palavras
das notas desafinadas de uma cana lascada
a servir de flauta, a soltar a dança
a roubar a cor ruiva dos lábios
depois de lançar o chapéu de palha
a cem metros de distância.

e não me ouves. dizes que não é poesia
que sou insano.
com esta alegoria – dizes - de adolescente retardado
com este sonho dentro da cidade
deixas o carro ao sol – dizes - um calor que não se pode.
e com o traffic na artéria principal ainda falta o combustível.
mas que grande chatice – dizes – como é habitual.

sorrimos.
fala-me de serras e pastores, de campos largos
e um refúgio com um pouco de colmo
num abrigo fresco de granito - digo
sorrimos -

terça-feira, 29 de junho de 2010

O beijo e o pormenor





Beijo-te:
regressa a paralisia do sono
uma ave sem asas ao apelo
e ao agravo
e as grandes questões
fazem agora parte de uma dieta
rica em represálias
e pormenores.

E a propósito de um quarto fechado
numa determinada técnica,
numa indeterminada Era,
as pessoas praticam a apneia
da razão ao pormenor.

A asfixia é uma máscara generosa
de rescisões.

Entretanto, corre uma brisa
torcionária ao nosso redor,
um circo ambulante inflama a povoação
mais próxima dos ângulos caídos
em desuso pelo latim das línguas refractárias
as bocas abrem-se mais e melhor
pelo caminho, perdem-se alguns pormenores
não obstante uma febre aftosa de pássaros
uma primavera que procede de Hitchcock,
e as ruas desertas, de certo modo um silêncio
supersónico que as coloca nos escaparates
da hora inferior.

E provavelmente o melhor champanhe
vigilante do mundo
as luas doutoradas em Saturno
e as estrelas andrajosas da circunstância.

Não há luzes mais ingratas
nas imediações
do céu da boca.
Na louca distensão da caverna, os prisioneiros
vêem pornografia barata
e ouvem coitos de fadas ao deitar
e recebem as penúltimas
instruções.

E a noite toda é uma fábrica extravagante de coser
diálogos às repúblicas dos rostos sucessórios do amor.

Sabes e repito - não te quero triste




Sabes e repito: como um círculo de atmosfera
de dia de noite em qualquer pedaço da terra
que há um fumo de incenso que inebria
com o poder mais forte das neblinas
todos os sonhos das ondas do mar___esse olhar
que atravessa as glândulas, amacia e prende
a pele dos lábios sem despedida.

não te quero triste_____________ digo-te.

tantos dias perdidos_______________ solitudes magnas
de alma___________________ assim entendo a ausência
que sendo dupla caminha lado a lado________________
uma corda alta tensa e friccionada no som de um violino
a traduzir agudo a estridência de um grito, o meu grito
a rasgar sobrevivências sem alívio no eco das palavras
por vezes férreas por vezes ácidas por vezes mansas
clamando___________________clamando o sossego
o necessário sossego das planícies__________ o alívio.

não te quero triste_______________________digo-te.

não te quero triste -

segunda-feira, 28 de junho de 2010

o mesmo início uma outra direcção


Robert Doisneau


verde e água no refúgio de um bosque.
crescem os juncos e erguem-se as rãs
muitas, num tempo quase mínimo.

recôndito lugar, símbolo de paz, silêncio de uma luz
pousada sobre um pinheiro a escoar, a encadear
em reflexos, as suavidades de sombra de um chapéu claro.

sente-se o piano, um som portátil de sonata kreutzer.
um violino que acompanha os versos fundos de Pessoa.
grande pessoa. vivia na arqueologia do sentimento;
um erudito da alma.

uma casa de ar no alto de nada.
um adro onde se salva um violoncelo, onde se dança
abraçando uma gota de água, um toque fresco
de neblina, uma música de asas que predomina.
onde se sente o voo e a dança.

mas no meio do bosque ou no cimo da montanha
dói-me o fumo fosco da cidade a sua toxicidade.

sinto-me melhor mas não descanso. não descanso -

alguns segundos e caiu um envelope


Robert Doisneau

um pequeno charco, uma fonte verde de água.
crescem os juncos esgueiram-se as rãs
formam o salto. Schlap! Schlap!

minutos calados
o silêncio de uma luz solar que não passa
no receptáculo de um colo de árvores
a aguardar, o horário terminal e descendente.

na subsidiária constância de veias que respiram
os trajectos únicos do sangue que segue dentro
circula em círculo e ilumina os olhos
que pousam em pormenores sem qualquer importância;
as sapatilhas um pouco rotas, a camisa descomposta, aberta,
os pêlos cinzentos presos num leito confuso, os cabelos despertos
num colarinho curto de pintor.
sem qualquer importância em toda aquela harmonia;
a formiga passa, o ralo rala, uma lebre salta
a cigarra sabe-se a viajante que toca guitarra
e as rãs saltam. Schlap! Schlap!

um esquilo sobe a casca de um carvalho
de duras unhas, no susto de cem olhares
anuncia o acontecimento, estranho
e surge um círculo nítido de escuro
um baque, um súbito crescer de água
um géiser de fumos a abrir do nada
a arrastar restos de folhas dispersas
a levá-las como penas numa rama de remos

e uma fala de alma, humana, em desassosego
em dialecto de imperceptível significado.

a água subia a uma imensa nuvem.
parou de repente e terminou sem mensagem.

calou-se a fala, a fala funda e surgiu num aroma húmido
uma chuva míuda, improvável.

o esquilo não esperou encostou-se dentro da casca
a um canto tremido de nozes e bugalhas. E a chuva
não durou mais do que doze minutos, doze minutos
breves naquele lugar de um vulgar estado de recato.

um assombro que assombrou as rãs no charco
que saltam. Schlap! Schlap!

quando todas saltaram desceu em voo picado uma folha de escola
uma página escrita no formato dobrado de concorde
de bico e asas dobradas.

alguns segundos e caiu um envelope -

sábado, 26 de junho de 2010

o mesmo mar




sei quanto a poesia pede a negritude do dia
ruga disforme do desconcerto
a maioria de dor no desencanto.


mas a poesia não pode ser assim contínua
submersa de um fundo escuro
e uma lua triste.

na longitude meridional de um mesmo mar
existe uma luz de amanhecer
uma colmeia de abelha mestra
uma porta aberta e mãos acesas -

quinta-feira, 24 de junho de 2010

a praia colorida de Matisse


Matisse " A alegria de viver"


portador da deficiência de te ver entrar no mar
de costas únicas e pele lisa
precedentes de uma sombra esguia
e de alguns ciscos de areia
campainhas de chuva, dura, sobre lentes escuras.

os cabelos de início flutuaram de mil luas, brancas, brancas luas
por dentro, por dentro das espumas.

insatisfeito, de mãos húmidas sabendo a sal
vi , vi o rosto que emergia, que emergia.

a deficiência tornou-se a incurável doença
de passear os dedos delineando a forma, sem tocar
a transparência imersa, estendida, azul espessa
a nadar no céu de água, em desenhos flor de lis;
tecidos tão pequenos que escondiam.

há horas que são dias e aguardar foi paciência
infinita, de um destino de não ser vento, durante o dia
nem ser estrela de noite a desviar uma cortina.

a doença aumentou febril no feitiço
de olhos que apertaram o juízo
imóvel e disponível para todos os sentidos
no crescer de um horizonte
de sabor e forma de morango.

o impossível som de um aeroplano publicita
a mensagem que se escreve nos ouvidos;
palavras, palavras, alguns sorrisos.

depressa se despe o dia e confessa sem receio
a assunção do crepúsculo, de ser belo o escuro
o nascimento de uma via imperativa.

nos lábios da despedida abrem-se pétalas carnívoras
dentes límpidos e sonhos , muitos sonhos programados
de pecados concebidos

e lembra-se o quadro, o quadro de Matisse
a praia colorida -

Navio de espelhos


Mário Cesariny "Naniora" 1960


O navio de espelhos
não navega, cavalga

Seu mar é a floresta
que lhe serve de nível

Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos

Por isso o tempo gosta
de deitar-se com ele

Os armadores não amam
a sua rota clara

(Vista do movimento
dir-se-ia que pára)

Quando chega à cidade
nenhum cais o abriga

O seu porão traz nada
nada leva à partida

Vozes e ar pesado
é tudo o que transporta

E no mastro espelhado
uma espécie de porta

Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto

A mesma cinta escura
o mesmo grau e posto

Quando um se revolta
há dez mil insurrectos

(Como os olhos da mosca
reflectem os objectos)

E quando um deles ála
o corpo sobre os mastros
e escruta o mar do fundo

Toda a nave cavalga
(como no espaço os astros)

Do princípio do mundo
até ao fim do mundo

quarta-feira, 23 de junho de 2010

núcleo


Juan Romero " Birds" 1987

não compliques disse o pássaro de fogo.
desamarra do cais a corda forte de sisal.
solta o barco e cala todas as areias
nos cabelos curtos de um tapete cairo.
segue a voz louca das mitologias.
destaca-te como autocolante de uma folha descartável
e cola no mar, longamente na onda
numa baía de Cascais
numa praia .
visualiza terminologias nos braços das rochas
flutuantes, do lado de fora.
reescreve as linhas de um mundo saliente
sobre um manto e sobre o magma
de um núcleo
de alma -

terça-feira, 22 de junho de 2010

estranha chuva de cinza e plumas


Cartier Bresson


fujo da densidade das palavras como de uma armadura pesada
que me baixa os braços sobre dois metros de espada
afonsina, como o nascimento de uma nacionalidade.
sonha-se uma batalha e o resfolegar avantajado do cavalo
que nos avisa: olha ali daquele lado, o sarraceno
não te distraias do perigo;
o perigo das palavras como raios de tempestade
a ser chama, a ser fogueira, a ser a imensidade
de uma sobrevivência original.

a densidade das palavras não perdoa porque não é confessionário
pode ser a voz aberta da terra, do ar, da água, da águia
do jaguar, do tigre, numa selva de fumos
fumos de nicotina a dobrar os alvéolos, os foles
tardios de uma transpiração de ar, oxigénio
e dióxido de noite, densa noite, densa noite
ou denso dia que arrepia e eriça a pele
atenta aos sinais de mais puras nevralgias.

fujo da densidade das palavras e tropeço sempre
em algumas claras facilidades : ver azul na cor azul
o branco no branco, quando nada se limita.

não se pode ter desejo de limite
fronteiras de desconhecido.
a vida existe porque não há morte.
agora. a vida existe.agora.forte
na exigência de um terramoto.

queria ser gazela suspensa e não conhecer o tempo
que conhece o tempo e interroga o tempo
de toda a falta de tempo. Irrita-me a rotina do metrónomo
não fazer pausa no filme para mostrar um torvelinho de pó
a dançar no concêntrico crescer circular, a crescer, a ser
criança de furacão, a cintar braços e medos
a rodar batimentos . à roda. à roda. à roda.
a largar de novo o botão, voltar ao filme, voltar à estrada.
de novo até ao instante seguinte, naquela esquina
um novo tsunami, um fogo de artifício.

fujo da densidade das palavras como se fossem lebres
a correr atràs de um mundo
um mundo imediato que pode ser leveza
ou que pesa, pesa como ferro, como chumbo
sem flutuar como tábua, sem ser asa –

fujo da densidade das palavras
e todas os dias as cruzo na mais estranha chuva
de cinza e plumas -

segunda-feira, 21 de junho de 2010

chocolate


Gerhard Richter aguarela 1997


o envólucro de prata magenta delicia
escondido na palma da mão.
solta-se fino um tecido de ruídos.
os dedos e os gestos acertam a boca.

a poderosa anfetamina suave e líquida
a descorrer lentamente de lá dos lábios
a descer a garganta de rio doce
a tocar o diafragma de mosto.

e um fio de contorno na côr base
assumindo um voo de asa;
um segundo de intervalo

e ao longe um barco -

um poema por vezes


Gerhard Richter

um poema por vezes não é o melhor amigo.
um recado de maré marítima. uma má sinfonia.
um grande golo de álcool a arrepiar o frio
a queimar a garganta. um espinho. um espinho.
não é o melhor amigo.

domingo, 20 de junho de 2010

O peso da ausência

Pesa-me a insensatez da morte
Essa forma de não ser
Enigma indecifrável com asas de medo

Pesam-me as asas da morte
Disfarçada de tristeza e sombra
Cordas invisíveis: os nossos medos são mortes

Pesa-me a vida nesta morte
Pesa-me o coração cheio demais
O cérebro pesa nesta caixa óssea que se faz pequena

Quero asas reais
Asas leves feitas de liberdade e sonho

Quero lugares irreais
Onde voar com as minhas asas
Abraçar os mortos que vivem em mim
Mais uma vez
Muitas vezes
Nos lugares coloridos da memória
Quero esses lugares reais

Basta-me o silêncio e o mar
Para saber que a morte não é
Nunca foi
Não será

Mas nessa ausência de passado, presente e futuro
Tira-me a vida esta abstracção concreta da morte.

Quero só o mar, por agora.

sábado, 19 de junho de 2010

Passado, Presente, Futuro






Eu fui. Mas o que fui já me não lembra:
Mil camadas de pó disfarçam, véus,
Estes quarenta rostos desiguais.
Tão marcados de tempo e macaréus.

Eu sou. Mas o que sou tão pouco é:
Rã fugida do charco, que saltou,
E no salto que deu, quanto podia,
O ar dum outro mundo a rebentou.

Falta ver, se é que falta, o que serei:
Um rosto recomposto antes do fim,
Um canto de batráquio, mesmo rouco,
Uma vida que corra assim-assim.

José Saramago, in "Os Poemas Possíveis"

não é costume falar da morte


fotografia retirada da internet


não é costume falar da morte.
ausência, presença irrepetível.
existe um dia.

não é costume porque a morte é triste
inexiste o corpo e a mente.
oco e vazio.

a morte é horrível -

sexta-feira, 18 de junho de 2010

No dia da morte de José Saramago, por Sylvia Beirute



















NO DIA DA MORTE DE JOSÉ SARAMAGO

{poema de homenagem}


agora, livre da coadjuvância das afectações: os
deuses se escondem nas artérias do teu
silêncio, na tua fraqueza perfeita porque
sem o hábito de se auto-observar.
voltaste a ti: numa outra intermitência da morte, com
o sublime que é tudo aquilo que ignora um todo e
conduz uma perspectiva até ao quociente interno
de uma invisibilidade que fala através
do teu questionário incicatrizável.
e daí tudo vês: vês-me faltar de propósito à
conclusão do meu poema, vês o peso
da omnipresença do abstracto, da hora antiga,
vês as minhas infâncias e urgências juntas e tar-
dando hoje em se converterem, devolvendo-me
ao que eu era: ao início do dia.

Sylvia Beirute
inédito

Caminhavam de mãos dadas


fotografia retirada da internet


A mesa de pernas de aranha incomodou a leitura.
A ténue realidade de uma luz no dia ainda pouco claro
Encaminhou na mesma página o boomerang de palavras:
Caminhavam de mãos dadas.

Descruzou a perna e colocou na frente um banquinho
Com ar de porco espinho; serviu de almofada a solas gastas.
O focinho apontava no mesmo círculo de palavras:
Caminhavam de mãos dadas.

A mesa de pés de aranha sem teia era infeliz.
O porco espinho na impossibilidade de se enroscar
Fincava uns olhos horizontais e apontava o nariz.
O sofá como colchão de água, balouçava e enredava
o eco largo de voz cava:
Caminhavam de mãos dadas.

O livro súbito fechou na mesma frase.
Súbito conversou com o tapete magoado
De risca verde alface no abismo do sofá.

Uma espiral nos olhos negros insistia
Rodava, rodava, nos olhos fechados:
Caminhavam de mãos dadas -

LIFE PRETENDING DEATH




Quando o mote é o amor finjo-me de morto
e mudo de conversa, de Veneza e de canal
e de hábitos nocturnos e tristes
e quando não posso fingir-me de morto
uso uma técnica em tudo parecida à vida
que um beijo plagia
na sua perfeição sufocante.

Pratico um certo tipo obscuro de sedação
procuro que a minha escola hipnagógica
aflija a tua pele de instantes
irreversíveis.
Por exemplo:
interessa-se sobretudo que o meu nível de consciência
se entregue a uma diminuição radical de luz e periferias,
mas que nunca perca de vista
o assalto que é preciso fazer sempre
que o outro morre também
quando o mote é o amor
e as práticas obscuras de ambos
acusam uma intimidade rasgada
precisamente no mesmo vínculo
perdido.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

o olhar espantado de Caravaggio


fotografia retirada da internet

naquela época antes das abóbadas pintadas
os portões de duas argolas, nas duas portas,
encostavam circulares nos altos arcos.

quando abertos cantavam
os mármores das calçadas
ecos de cascos de cavalos
trombetas e estandartes
pagens e gatos rápidos
fugindo a outros lugares;
caves, túneis e escadas
na luz flácida de flamas;
archotes triangulares.

naquela época, o azul, o violeta, o rosa forte
cores de Giotto, nas paredes, nos tectos
como enormes quadros de centenas
centenas de gente em rosto diferente
a elevar a alma, a mostrar segredos
na iluminada mente de muitas cenas.

naquela época o berço do renascimento
o despertar da ciência
sob o olhar espantado de Caravaggio
numa rodela de cedro.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

lógica





a lógica não comanda a emoção
como lúcida engrenagem no encaixe de incidentes.
não conforma o esqueleto na posição correcta
para melhor mexer os lábios de frases certas.
é previsível como um quadrado ter quatro lados;
normas desactuais de possibilidades.
a negação da surpresa. um paradoxo filosófico.

a lógica é uma defesa e a noção geométrica do medo.

terça-feira, 15 de junho de 2010

A taça de chá


retirado da internet

O luar desmaiava mais ainda uma máscara caida nas esteiras bordadas. E os bambus ao vento e os crysanthemos nos jardins e as garças no tanque, gemiam com ele a adivinharem-lhe o fim. Em roda tombavam-se adormecidos os idolos coloridos e os dragões alados. E a gueisha, porcelana transparente como a casca de um ovo da Ibis, enrodilhou-se num labyrinto que nem os dragões dos deuses em dias de lagrymas. E os seus olhos rasgados, pérolas de Nankim a desmaiar-se em água, confundiam-se cintilantes no luzidio das porcelanas.

Ele, num gesto último, fechou-lhe os lábios co'as pontas dos dedos, e disse a finar-se:--Chorar não é remédio; só te peço que não me atraiçoes emquanto o meu corpo fôr quente. Deitou a cabeça nas esteiras e ficou. E Ela, num grito de garça, ergueu alto os braços a pedir o Ceu para Ele, e a saltitar foi pelos jardíns a sacudir as mãos, que todos os que passavam olharam para Ela.

Pela manhã vinham os vizinhos em bicos dos pés espreitar por entre os bambus, e todos viram acocorada a gueisha abanando o morto com um leque de marfim.

A estampa do pires é igual.

Almada Negreiros, in 'Frisos - Revista Orpheu nº1'

cartas de presença - o pecado de uma ausência


Azul do Egipto (silicato de cobre)


descobre o cobre de cor azul
dentro de um frasco de pharmacia
elemento alquimista de um céu límpido
sem os brancos dançarinos – gotas de água.

descobre o sol saliente que levanta o algodão
quase pena branca de escrita lenta
num início de lençol de linho traçando a perna nua
uma onda que acentua a seda e a luz de saída;
colina alva de pele, energia positiva.

abre dois ramos, dois remos de ar, dois braços
acima. acima. estica o espírito, de gestos
gestos tensos, espasmos, arrepios,
pequenas pontas de alfinetes
subindo os degraus firmes a um lago adormecido
a um rolo de cabelo apanhado como um ovo
solta o pescoço e os olhos abertos
ou fechados, ao ritmo certo.

descobre o pequeno almoço, as torradas
como cartas de presença e o sumo de laranja
reinvenção de um néctar consistente
doce e fresco que se entrega;
cálice de veludo e permanência.

descobre como são únicas as migalhas
grãos de praia sobre o leito qual toalha
sobre o dia que se estende, quente
numa risca incidente na parte mais larga da coxa;
um sinal de desejo .


descobre que saí de madrugada
consternado na ausência já vizinha
como um gelo de Kiev, uma ventania invencível
que solta o corpo em partes divididas na estrada
qual fim de mundo de grau zero, de grau nada
pedra pesada na água que se afunda
depois do sonho, depois do sono tão profundo ;
e os dedos, os teus dedos, dedos leves de almofada
nos dois lados cara.

descobre que as horas não demoram
que o mar mediterrâneo pousa e espera.
que as algas presas e o nadar de costas moram
nas melhores ilhas, as desertas, sem procurar caravelas
a construir num pedaço de selva, um dossel
de lianas e ruídos e brilhos de folhas verdes,
restos de magnólias e cachos violetas.

descobre o cobre que me cobre de tinturas
separando cicatrizes, ternuras incompletas
as despedidas, as descobertas,as partidas equilibristas
os sons de lua e as estrelas das arestas.

descobre a lisura fácil dos poemas
nos estames das orquídeas, das prímulas
na esguia silhueta das sombras dos ciprestes
nas mandrágoras dos mandrakes
cobre-me de magia e paraísos;
homem água, homem fogo, homem tudo
a elevar planetas.

descobre o presente junto ao cravo
junto ao frasco de pharmacia mogno escuro
onde o cobre não se descobre mas azul
azul do Egipto, de Babilónias.

adivinho a inclinação do umbigo e a forma como ergues
o desenho simples, quase um esquiço
e um sorriso. adivinho a leitura de algumas linhas.
os lábios finos. adivinho.

descansa um pouco antes de continuares o livro.
liga o Cd pelo comando. sem o saber. descansa.

ainda cedo deitei comida ao peixe
enquanto preparava um pouco de geleia.
os gatos serenos sumiram na sombra das plantas.
as tartarugas esticaram as cabeças para olhar a glicínia
depois esconderam-se na telha portuguesa.


o Rui e a Luísa falaram no último projecto de um teatro
sobre modernidade e revolução, ao som da marselhesa.
reinscrição daquelas ideias que nunca completam
hibernam e voltam plenas de entusiasmo e emoção.

volto. volto cedo. muito cedo.
a tempo de colher as framboesas -

segunda-feira, 14 de junho de 2010

a chave dos sonhos



Magritte " A chave dos sonhos" 1930


um sonho pode ser uma acácia perto do cais
um barco, um mar
um farol na forma de uma vela acesa
um fumo ténue que sobe sobre o ar.

um sonho pode ser não haver deserto
nem um martelo de aço que bate
sincopado em ritmo de oráculo, igual.

um sonho pode ser encontrar o tempo certo
sem a neve formal de um chapéu de coco
ou a filosofia mais antiga de um primeiro:
o ovo ou a galinha?

um sonho pode ser uma chave na tempestade
o princípio, quando quase a permanente ausência
uma viagem sem distância de forma intensa
a emoção de um grande descobrimento.

um sonho pode ser sempre -

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Sem outro intuito


De Chirico "Hector e Andromache" 1917

Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

caminho florentino




a torre inclinada era no lugar imaginado.
o mercúrio de prata sobe acima dos trinta.
o comboio de janela aberta oscila, antigo
escorrega as linhas, afasta-se de Pisa
procura a flor florentina.

cortinas azuis de muitas quadrículas
percorrem o vento na carruagem
fora e dentro
dobradas e loucas em movimento
fora e dentro.

as estações sem fumo nem gente, de ar amarelo.
os campos vagos e ausentes, alguns de cor seca.
podia ser um qualquer lugar de Agosto
nas margens paradas do rio Coa
há muito tempo nas férias de muitos meses.

fora de linhas os rolos enrolados de cereais
uma imagem quieta de uma corrida
em pistas douradas de espigas.
de fronteira, árvores, onde se reconhecem
as vestes de flores vermelhas da romazeira
e as torres de losangos metálicos, altos
onde no alentejo fazem os ninhos
aves de bicos grandes;
curioso vê-las voar de fraldas atadas
responsáveis por todos os nascimentos.

a caminho de Florença as cortinas
voam leves no vento. fora e dentro.
fora e dentro.

num pequeno intervalo enquanto o calor
se estende de deslizantes gotas
surgiu a vontade de colocar as letras
nas costas largas de um bilhete.

poucas, poucas letras porque a caneta
rebolou numa tinta lenta e redonda
cansada transpirou, caiu para o lado
como se macio o banco da carruagem
ou o plástico cinza empolado e fraco
que escondia o chão.
caiu para o lado e adormeceu.

quando acordou de um sonho imaginado o rio Arno brilhava
e as margens mostravam muitos verdes de folhas pequenas;
reconheceu os amieiros de mãos estendidas e troncos finos.
inclinados. inclinados no equilíbrio difícil.

Florença é bonita -

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Gestos a evitar



Recupero da febre das princesas de mármore.
Vou tornar-me num homem necessariamente melhor
mas sem flores para dar.
A partir de agora, levarei apenas o meu corpo frágil
ao baile
e ao teu pescoço as minhas mãos
desiguais.
Viajarei sozinho para as ruínas de amanhã
capital do novo âmago.
Levarei a minha face à face da estrada
estupefacta, e serei eu próprio quem irá escrever
a notícia dos meus passos directos ao acidente
e ao oriente da idade, e de tudo o mais
que nos embaraça
de rugas e teatros exaustos
entre tantos gestos a evitar.

domingo, 6 de junho de 2010

Elogio da imperfeição




A maior avenida não é a da liberdade.
Há lugares que só na proibição se acendem.
Por exemplo: uma mulher quis ser uma sereia
célebre e ofereceu metade do seu corpo
à ictiologia e à natação.
Mandou vir a mudança radical pela internet.
Como se esquecera de especificar o animal
marinho, trouxeram-lhe um fato de cefalópode
sem possibilidade de troca ou reembolso
de esperanças.
No entanto, a mulher que queria ser uma sereia
célebre não desesperou. Vestiu o fato
e comprou um microfone para cada tentáculo
e foi para a avenida da liberdade cantar.

sábado, 5 de junho de 2010

I AM LOVE (Io sono l'amore 2009)

Obrigatório Ver! Uma obra de arte!


o amante de marguerite



não são secos mas silentes e húmidos
os lábios que percorrem as reticências contínuas
--------------------------------------------do teu corpo.

a forma única como caem as roupas. brancas.
consequentes com a luz forte que se perde na sombra
de costas para a janela, tão de frente de------------- de nós
--------------------------------------------------dos nossos olhos
abertos, presos como borboletas presas num desejo
de dois, de dois-------------------------------------------de dois
dois pássaros breves nos bosques verdes do Gerês.
dois navegantes imersos nas águas azuis de um Mar Egeu.

dois passageiros de almadia num pequeno rio estreito e afluente
de um grande Zambeze, um grande Mississipi, um grande Nilo
porque um amor grande procura -----------o pequeno espaço
procura pequeno espaço--------------------------------------de dois
desatento a brisas graves e persistentes
ansiosas de ventos norte, ventos frios
a quererem ser importantes perante o estio;

e o mesmo é dizer que o amor é distraído. não fecha a porta
porque exagerado, máximo e indiferente a todos os perigos.

pecado? pecado? --------------------------------pecado?
o momento raro como caem silentes e húmidos
os lábios de um, os lábios de dois, os lábios múltiplos?

-------------------------------------------------o pecado
abriu uma via que se tornou indivisível ---------de dois
tão única como os címbalos que escutámos em criança
nas diferentes aldeias junto às fronteiras do Minho;
passeavas de vestido fino enrolado de rendas
arrolavas um chapéu largo e sapatos de fivela
as meias em meia altura sem chegar ao joelho.
corrias como uma gazela nos caminhos junto ao rio
o rio de Caminha, os barcos, as matas do Camarido.

o que pode fazer um livro. um livro. palavras escritas
num mar de tantas palavras. tantas palavras.

o reencontro foi uma montra.
uma montra cheia de livros de uma livraria
e um nome. nome que não digo.
escrito de letras pequenas para o título.
título que não digo. mas grande. tamanho trinta
como um de Marguerite. tamanho trinta.
e as palavras. grandes palavras do livro.

a quem? mas não é possível?

o autógrafo na letra tremida. o sorriso desabrido.
um canto de papel. de flores. de embrulho. liga-me!

agora a luz e as sombras silentes que oscilam
e os lábios como sinos, os braços como sinos
os corpos apertados como sinos
e os sexos que se juntam e apagam.
apagam de uma só vez as reticências contínuas
--------------acendem a auréola, brilhante chama .

------------a brilhante chama de pecado? não . não.
de um novo livro que porventura será escrito.
de muitas palavras. muitas essências e flores
prímulas, magnólias, margaridas, estrelícias
antúrios, brincos de princesa, orquídeas.

mãos flutuantes e penas macias-

mãos como penas macias a deslizar de rolas
sobre os ninhos, no pinheiro e na casa junto ao rio -

sexta-feira, 4 de junho de 2010

indeterminação


Fotografia de Kiran

não sei porquê este pensamento se ainda há pouco
fomos sempre - minutos e minutos tão serenos
não sei porquê se ainda há pouco
fomos tudo - senti-me tão seguro

quinta-feira, 3 de junho de 2010

A lenda do Homem-algo





Parte de mim está vestida a rigor para o diálogo
e leva rosas na lapela e supernovas no epitélio
lingual e chocolates na mansidão para a sua amada.
A outra parte recebe estes presentes todos
ao pormenor no conforto de sua casa.
Depois escreve uma carta que a primeira parte
não pode nem ousa decifrar.
A primeira parte de mim parte-se em bocados e chora,
e o choro mancha-lhe a elegância, murcha-lhe as rosas,
apaga-lhe as supernovas e desmancha os chocolates.
Uma vez nua e consternada, a minha primeira parte
resolve mais uma vez contra-atacar
e usar a sua nudez e a sua consternação
a favor do bem comum e da lógica indivisa das galáxias
mas a minha outra parte e o seu universo continuam
em contracção e eu, aproveitando o intervalo
e o debate aceso entre o governo e a oposição,
tomo o partido do que está a mais
e um comprimido da classe dos inevitáveis
e vou-me deitar.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

sabor a chocolate


retirado da internet

uma mão sobre o teu seio – acalma
o beijo numa pálpebra – acalma
um sopro nas brasas a chama alta – acalma
o suspenso lugar de um tempo que aguarda – acalma
uma folha fresca de palmeira numa praia – acalma
o corpo pele de seda na ternura de um embalo – acalma

e calmo sobressai o desejo
que cai açucarado
e sabe sabe
no sabor íntimo a chocolate-

de ombros subidos


Salvador Dali "cão dormindo na sombra do mar" 1950

no amanhecer de sol farto
ganha raízes a mágoa.
cobre a alma
soçobra breve na resistência de muralha.

por sobre a língua prova-se a pimenta
o picante externo e azedo de ervas
algumas ditas de aromáticas.

em alguma manhã brisa e um mar
leve, de leve para não acordar, de leve
para cintar a mágoa num búzio de chumbo
cinzento e inerte reboando tudo
dentro, dentro de uma mensagem presa.

o sol marca a pele nua, morena
não enchuva nem enmolha
permanece no silêncio do corpo e da voz.
não incomoda enquanto o mar cobre
cobre de altura os pés nos dedos de água
e areias sobre, sobre os dedos
por sob os dedos, repartindo o brilho
de ondas, leves ondas livres pintadas de branco.

de ombros subidos, subidos do meio do chão
os olhos num saco de raios, pousados
nos verdes limos das rochas escorridas
a condicionar as algas de serem grossas e carnudas
nas voltas dos tornozelos
de terem borbulhas nos alvéolos de génese
de outras folhas, macias e húmidas.

o sol é bravio, insistente, forte, de olhos quentes
e as algas seguem os passos sem mágoa
a mágoa presa no búzio de metal
búzio de metal, de chumbo –

brisa. a brisa de alguma manhã segue os ombros
e os cabelos agora curtos que desnudam a coluna
- a brisa sopra, fresca arrepia, causa uma hirta melodia
intermezzo de piano em saliências visíveis.

o viajante caminha, sonha e sobrevive-

Still Life




Há um momento em que, de facto, se faz justiça.
Quando o silêncio demove as coisas do seu suporte terrestre.
E as coisas continuam pousadas no peso de serem assim,
tanto quanto o destino,
deixando contudo à sua volta uma mancha de hipocrisia
(ainda não há fraldas para a incontinência das coisas
que sabem que voam, mas fingem o repouso
a preços baixíssimos.)

terça-feira, 1 de junho de 2010

permanência


fotografia retirada da internet

um segundo no intervalo de cada segundo
um minuto depois de cada minuto
meia hora em hora a meio;
metade de um tempo cheio

inflamas em flâmula a chama indefesa
permanência e desejo -