domingo, 31 de outubro de 2010

um café com o tempo

Vi-o espalhar-se pelos outros, por dentro de tudo, tudo que se movesse lhe servia e ele lambia. só há tempo se houver movimento e quando me chegou escorria pelas fendas certas e outras que abro só para ver quem entra. veio assim, em liquido vermelho polvilhado de azul, direito ao colo, onde nada se endireita pela curvatura que o alimenta. não tentou nada antes. se tivesse arriscado os olhos, mãos ou qualquer música horizontal com pescoço de tango eu tinha travado. um poço de líquido azul no colo e o ranger do embalo de um balde. enquanto me explicava a minha explicação ria-se muito e é sempre verde e verdade, sem saltos altos e sem algas nos olhos. a explicação era de pó verde tira-nódoas e depois de usada ninguém via a mancha da saia e pude sair, com muito pó nas fendas, para tomar um café com o tempo.


Quando entrei no café as cadeiras desenvolveram uma velocidade incómoda de sentido contrário à história e isso era tão real como o poço. não caibo continuamente. sentia-o por fora, a travagem à procura das linhas e o deslizar por dentro. o espaço de travagem à volta do meu corpo. em alguma das cadeiras mais lentas percebi que seria apenas eu a dançar, sozinha num lago vermelho de pó azul, que afinal não tinha entrado pelas fendas, mas saído lentamente do centro de mim. queria trocar de pernas, mostrar que a dança é só uma, com uma perna e milhões de braços em todas as direcções mas a minha explicação era verde e o tempo comia milhares de bailarinos em jejum à medida que empurravam os ponteiros.


E então dancei no meio do lago e fechei as luzes da margem. deixei o tempo observar-me. não estava mais ninguém no café, escolhemos um em que o movimento das cadeiras não perturbasse o lago. estava escuro e havia relógios parados que boiavam à minha volta. e senti faróis negros ao longe e já não sabia se tinham prazer em observar-me ou se registavam apenas. mas como ando cansada de ver os bichos a dançar sozinhos fechei os olhos enquanto o fazia. ouvi-o dizer, eu leio.


No dia seguinte, ou anterior, havia bocados de tempo, alguns meus, colados em folhas de um jornal. os faróis eram afinal lentes com a abertura temporal de exacta solidão. as imagens não sabiam parar e ele ria-se baixinho para o outro lado do universo. ângulos onde me via mas não eram meus e às vezes parecia que eram. e alguém na margem parecia dar-me corda. os ângulos eram de todos para todos e olhavam-se por infinitos. retalhos de bichos publicados, ainda vivos, e a forma como se causavam- jactos de luz rápida que me rebentaram as fendas e me iluminaram o corpo por dentro. nunca tinha vista o meu corpo por dentro. fechei o jornal.


Só voltei a encontrar o tempo em espaço público com granadas no bolso a correr numa circunferência de mínima possibilidade. estava disfarçado de outro líquido qualquer, talvez amarelo clean, mas a suspensão denunciava-o. tinha as mesmas lentes, reparei nas lentes e como fotografava outro movimento qualquer, entrado pelo pescoço em tango e saído noutro estado, talvez inter-ligado e afastei-me devagar. talvez pudesse passar-lhe ao lado, dar passos sem tempo. abri novamente o jornal. bocados de danças lambidas aos outros, feridas de caras esmagadas no papel e linhas sempre lógicas, sem umas não havia as outras e os novelos voavam ao plano de uma melodia horizontal. reparei que as linhas tinham sido sugadas com carinho para não partirem e imaginei o medo no tempo. que talvez não saiba que está espalhado por todo o espaço. pensei em dizer-lhe que não deixe parar o movimento do universo apesar da forma se ri dele. riu-se. só pode haver tempo se souber rir.


A terceira vez que o vi estava nervoso, a enrolar freneticamente a gravidade, e ouvi dizer que era preciso agarra-lo. cidades inteiras giravam-lhe à volta e as árvores ultrapassavam-nas em emergência de um velho saber. eu caminhava devagar na circunferência, desta vez sem granadas. começava então a perceber que o tempo é mais branco e o medo que o contínuo nos pode fazer. era preciso um referencial e até o meu espelho servia. como se organiza uma circunferência, e eu repetia, repetia sem centro. mais uma vez os bancos do jardim não se decidiam e eu percebia a necessária imprecisão do espaço quando o encontro. as árvores pararam, envergonhadas ao longe, e só nós em pico de energia de uma superfície subitamente alisada. numa cadeira uma pedra tentava o movimento e na outra magma doce directamente do centro a perguntar-me, tens frio? não tinha frio, estava só a transformar-me em pedra. teria sido convidada para assistir ao colapso de um buraco - nos buracos fecho os olhos para descansar, não são tristes são só negros dizia-me - teria o buraco rodado demasiado ou seria ainda só o velho poço - estava dentro do horizonte, não podia ficar sentada - isto é urgente, tens que inverter a seta, fazer voltar todo o magma para dentro do vulcão até um único ponto - perguntava-me se sabia que a probabilidade de eu não estar ali existia e ria-se. o riso do tempo é um passar de mão pelo pêlo da humanidade. despacha-te, dizia-lhe, e o magma ia derretendo a pedra que só tinha solidificada nas fendas. e eu corria e contava e contei tanto e corri tanto contra os ponteiros que julguei que o tempo fosse parar - no balde subiu só uma lágrima. perguntou-me: será que só se sai do horizonte quando se sabe amar o tempo?


nada mudou na janela acesa. nem as borboletas


Marc Chagall " a mulher e as rosas"


a folha em branco e uma chuva intensa.
tento escrever o poema como quem faz arqueologia;
calças de bolsos largos e bloco de notas moleskine
no meio dos sinais, dos labirintos
indiferente ao deserto, envolto de areias fluidas –

as palavras chegam na incerteza de um rosto indefinido
cobertas de pó como um cacho de uvas, uma a uma –

junto-as nas suas teias de polifonia e escrevo
sobre as memórias escondidas e súbitas
sobre o mar e sobre os rios, sobre os livros
sobre o calor e sobre o frio
sobre as ausências e a dualidade dos caminhos
colocando de um lado o cálice bordado de pratas
e do outro o vidro frágil de uma loja dos trezentos –

as palavras no altar sagrado rodeadas de pecados
numa rua escura de prédios altos, na cidade
junto-as em bando na primeira linha e escrevo
sobre a seringa e o copo de whiskie
de cabeça ao lado por cada um dos motivos
como queimaduras de um inferno
que provocam o grito, o sentido da dor
e um vago inconsciente alívio –

escrevo essencialmente por sobre a tua pele
como se fora um papiro de humana característica
em que as palavras vivas, dinâmicas e líquidas
entrem como lava ardente e sejam companhia –

e enrolo-me e enrolas-te pela noite dentro.
suicido-me pelas vastas madrugadas e pelos dias
tão longe dos alegres juncos
tão próximo de um caminho de ciprestes
quando se afasta aquele canto de flauta
e se arrasta uma nebulosa incorpórea
que transporta o fumo e a cinza do inverno –

nada mudou na janela acesa. nem as borboletas
soltas, epidérmicas e tímidas -

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

TEMP(EROS)

O tempo perguntou ao vento
que tempo faz amanhã.
O vento respondeu ao tempo
que o vento tem tão mau tempo
quanto o tempo de amanhã.

E as manhãs não eram minhas,
e tu não ias
e vinhas
e fugias pela manhã.
Adeus aos travos de vinhas
e conversas de hortelã.
Que tempo fazia hoje
Se não houvesse amanhã?
Que lógicas de distâncias,
de raios e circunstâncias
que fugiram da sertã?
Eu cozia a ventos Este
mas tu ias
e esqueceste
e afinal era amanhã.
Ou então talvez mais dias,
não há tempo, que manias!
E no entanto,
chovias.
E fugias-me aos temperos,
e mal dos meus desesperos,
que uns segundos de bacias
eu sentindo que te ias
choviam gotas mais frias
do que estava receita.
Um bom sorvete de chuvas sempre curou as manias.
Uns tique-taques mais quentes
e uns pinguinhos de avarias
e o tempo nunca foi nada
que não tivesse mais dias.

Hoje não está nevoeiro
E eu já sei que não podias.
E ainda assim contei os ventos
e as nortadas que trazias.
E nas ausências,
choveu mais lento
que as horas,
leva-as o vento.

Já não chovias.

O tempo perguntou ao vento
que tempo faz amanhã.
O vento respondeu ao tempo
que o tempo quase que é lento
quando há vento toda a manhã.

perguntas-me sobre o tempo


(fotografia retirada da internet de autor desconhecido)


conceito estranho
sequência e réplica que perdura, única
único, de muitas páginas e actualidade
na precisão imediata : mesmo agora
naquele dia, naquela hora –

no salão de chá dos jardins de Serralves
um sopro traz a Rotunda
uma aragem traz o Palácio
um Natal a cumplicidade de uma rua de baixa
uma prenda de artesanato;
um pássaro preso de mola
sobe de forma manual
desce em cadência automática
e aponta: tira, fica, rapa e põe

o pinhão da pinha do pinheiro de uma área protegida
junto ao reboliço do mar onde areia em movimento
e a cápsula de dunas, em socalcos redondos e flores de cactos –

a memória é um relógio isócrono que recorre e circula
de espírito presente, um vudu de fumo dentro
que ressuscita no contemporâneo
a antiga semente –

uma Páscoa a oferta de um desejo
uma chave, um apartamento
a pressa de alguns mantimentos numa loja conveniente
duas latas de refrigerante, duas sandes de não me lembro
adams amarela , pastilha elástica, uma barra de chocolate
a prata enrolada numa bola, de quatro em quatro
a inscrição azul da paisagem, um lago na Suiça, a doçura derretida –

um facto : caíram as torres gémeas
depois as múltiplas verdades, de cada um em qualquer lugar
o momento quando os media escrevem no vidro magnético
a fusão majestática, sem remédio, a nuvem de pó
na América um rosto incrédulo
na Arábia o regozijo de uma barba afiada.
por cima de uma cómoda, no quarto
as imagens como cartas de um baralho
um jogo de pares, ouros e copas, paus e espadas –

os minutos, as horas, os anos
não possuem o dom da transparência
há enseadas fora de tempo –

e silêncios escondidos numa praia
mãos de gaivotas em roupas de inverno
botas descalças, gotas salgadas, um mar
a lisura inquieta e húmida após a fuga das ondas
o horizonte nos espelhos de mercúrio

e em cada gota de sangue, o tempo
o tempo do pêndulo, alinhado no equilíbrio
de uma dança, uma canção de búzio:
presente presente
passado passado
futuro futuro

único, inédito, inamovível –

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Atrasada mental


16 e 48 - já não apanho o comboio
45 segundos, 46 passos de passada larga ou um desatar a correr depois do café na subida
e chegava

18 e 33 - o comboio descarrilou
45 segundos, 46 passos de passada larga ou um desatar a correr depois do café na subida
e partia


Fui até ao café antes da subida beber um chá
Pedi verde
Serviu preto
E eu fiquei a pensar num título para um poema

a três tempos

1.
o tempo não existe. é um engano. uma mentira. uma necessidade
compulsiva de controlar o incontrolável. uma convenção
que se pretende universal mas não absoluta.
a sua pseudo existência acompanha a intemporalidade do espírito
humano.
o tempo, serve para eu saber quem sou, de onde venho e o que quero
ser no futuro próximo e longínquo. serve para encadear
tudo o que existe no plano físico, de uma forma metafisicamente
difícil de compreender.


o Alberto disse-me uma ocasião que o tempo -
como coisa quantificável e científica - serve
para que os acontecimentos não aconteçam todos de uma só vez.
eu nunca duvidei do que me diz o Alberto mas às vezes,
de longe a longe, quer-me parecer que o tempo -
como conceito abstracto e iniludível da vida -
serve para atrapalhar cada um dos pequenos segmentos
quânticos em que é possível espartilhar a existência.
a minha ou qualquer outra.
epidemicamente.


2.
e eu, pequena criatura, menos que as areias do pó que pousa
ao de leve nas nuvens do pensamento de Cronos,
danço desassossegado com um enigma que ele inventou.
sei-me incapaz de lhe fugir,
ignorar as regras ou pisar as fronteiras;
e sei-me sempre sem ele,
sem equilíbrio e sem controlo,
a correr atrás da minha própria rotina –
atrasada e descompassadamente -
desesperado de a apanhar, tão alheia de mim que agora é.


tamanha auto consciência seria de louvar, não fora a enormidade
de tudo o que não sei e a inutilidade do pouco que vou intuindo.
pergunto-me se com Alberto terá sido assim.
claro, no campo da problematização teórica e científica, ninguém
foi mais longe. estou até convencido que se houve alguém perto
de dar um estalo na testa altiva e emproada de Cronos,
esse alguém foi o Alberto. digo no correr normal dos dias.
no dobrar das peúgas e no ser-se cidadão
e no tentar não envergonhar os pais. pergunto-me se
ao Alberto também faltava tempo.
quero dizer: se lhe faltava, como a mim.


o facto é que não tenho tempo.
tenho-o
porque o sinto em mim a embolorecer os ossos
e a alegria. a dobrar rugas nas expectativas.
a esboroar espaços vazios onde vem morar o vento
dos outonos que vão passando.


tenho-o
porque o reconheço quando estamos só os dois. sem mais ninguém.
então, descubro que me falta iniciativa. que entretanto
me desabitou toda a família da vontade como um inquilino descontente
que se mudasse para onde o sol seja mais quente e as pessoas
sorriam mais pela manhã. e deixo-o fugir outra e outra vez,
existo, simplesmente, e ele fica, durante um bocado a fazer-me
festas na cabeça e a encanecer-me os cabelos.
figurativamente.


depois desaparece subsumido entre o aprumo das
lombadas e a linearidade dos festos e dos mil e muitos
gestos que se gastam todos os dias.
em coisa nenhuma.
desgovernadamente.


3.
estou velho, Alberto. o que não compreendi ou aprendi
ainda, já não é meu para aprender ou atingir. se outrora
me foi cara a ideia de cada acontecimento
acontecer na sua vez, estou agora tão desimportado
que já nem perco tempo a pensar em tal coisa.


estou cansado, Alberto. talvez encontre ainda
vontade para não querer escoar
o tempo que me resta a reflectir contigo – que já não existes
cronologicamente - sobre as incongruências dele – que afinal
é eterno. tu baralhas-me. e o que me baralha é infalível
que acabe por me irritar, e eu estou velho demais para me irritar
com a competência e presença de espírito que me merece a memória
que tenho de mim próprio.


suponho que também a memória - como o tempo - 
me vá mentindo aos poucos todos os dias.
que aquilo que me lembro de ter vivido, tão real
como eu estar aqui, tenha afinal uma existência
tão irreal como aquela que um dia atribuí
ao próprio tempo.


talvez nada do que me lembro tenha de facto acontecido. talvez
tudo não passe de amontoados de imagens descoloridas
que eu próprio inventei, juntando - sem atenção às quantidades –
os meus incumprimentos e o passar tempo.


tanto faz, Alberto. porque o que o tempo me deixou
é tudo o que me resta.
agora, uma realidade relativa.
absolutamente.
raquel patriarca
vinteeoito.outubro.doismiledez

nós aqui

.
entre nós, tanto tempo.
vidas oferecidas num verso
de papel velho e um abraço.
entre nós, tanto tempo. nenhum espaço.

raquel patriarca
vinteeoito.outubro.doismiledez
.

o fumo embarca em espiral e sobe pelo quarto


( fotografia retirada da internet autor desconhecido)


o fumo embarca em espiral e sobe pelo quarto
incondicional e vago no distúrbio de um silêncio.
um relógio marca o tempo
no pêndulo suspenso de uma casa suíça
e a ausência de cuco. som nenhum –

o fumo choca no paradigma e esvai-se como uma estação aliviada
depois de uma partida, aguardando
o preenchimento de um banco onde algum, alguma
pouse uma mochila, abra um sumo e reduza uma sande
a um ponto final, um dedo esticado no resto da maionese.

o fumo sobe e desaparece. cai a cinza.
e uma outra vez arrefece enquanto sobe e ganha notoriedade.
depois desaparece
até que o filtro, o pouco cigarro, consumido , esmagado .

permanece uma grande dor de cabeça
e um remédio de pastilha que coloca um véu branco
um dossel semi-opaco como cortina de um teatro

do outro lado

sobressaem algumas manchas de morango
uma casca de banana, um aroma de canela
e passos breves, pontuados de intervalos
que reflectem a sombra -

os trechos das peças de Shakespeare são longos
exigem a energia da água, rios indomáveis
o dramático, a exigência de uma cena, um quadro –

pelas paredes do quarto
os lábios subitamente secos, o silêncio
as cinzas e um estalido de fósforo sobre a lixa
um relâmpago que dispara, a chama
que de novo acende –

o relógio parado, o cuco doente –

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Os três pablos de setenta e três


Pablo Picasso "Bailarina sentada"






Me gustas cuando callas porque estás como ausente,

y me oyes desde lejos, y mi voz no te toca.

Parece que los ojos se te hubieran volado

y parece que un beso te cerrara la boca.

Como todas las cosas están llenas de mi alma

emerges de las cosas, llena del alma mía.

Mariposa de sueño, te pareces a mi alma,

y te pareces a la palabra melancolía.

Me gustas cuando callas y estás como distante.

Y estás como quejándote, mariposa en arrullo.

Y me oyes desde lejos, y mi voz no te alcanza:

déjame que me calle con el silencio tuyo.

Déjame que te hable también con tu silencio

claro como una lámpara, simple como un anillo.

Eres como la noche, callada y constelada.

Tu silencio es de estrella, tan lejano y sencillo.

Me gustas cuando callas porque estás como ausente.

Distante y dolorosa como si hubieras muerto.

Una palabra entonces, una sonrisa bastan.

Y estoy alegre, alegre de que no sea cierto.

Pablo Neruda

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Prece



Imagino o país da página em branco.
E, ao lado, mesmo ao lado,
o país da página preenchida.
No primeiro, a tentação de existir.
No segundo, a existência da tentação,
segundo Santo André, o solícito,
como se a tentação fosse também exprimível
em tentáculos da existência e tentativas de tentativas,
assim a existência fosse uma medusa ao espelho,
com os seus cabelos geologicamente perturbados de signos
suicidas,
mas à qual devêssemos pelo menos um olhar, uma sílaba,
qualquer forma arcaica de insistir
na conveniência de não ter nascido,
como qualquer homem,
que não é de ferro.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

a cesura do pássaro e um voo inacabado


Gerhard Richter


um pássaro distraído cravou o afiado bico
como punhal sonoro no insuflável, balão que voava
muito acima de Lisboa - minúscula a torre eiffel
o london eye, a catedral de Bruxelas, o Prado d’El Greco
o porto de Calais –

imenso o ar –

a descida não é uma pedra no charco,
uma exibição rude de falcoaria
a idade média de flechas e ameias, súbitas e mortais.

a descida prossegue sem loopings nem curvas arriscadas
desviada pelo vento das cidades.

cai o que resta do antigo balão luzidio
não mais do que um pouco apressado
no cimo de um monte calvo.

um silvo final, o balão desfaz-se, ganha a forma
de um grande oleado, a grande mancha encarnada
um despropósito na paisagem de um fim de mundo.

não são os raios de sol em linhas oblíquas
nem as estrelas encerradas de branco
que condicionam a alma e instauram a nomenclatura do medo
no único náufrago de um manto de céu

e neva, neva dentro da fatia gasta do ventrículo direito
aquele que nunca fala do simétrico, no espelho -

no cimo da montanha
perdura a dor que a memória não perdoa
e a hipotenusa de futuro que completa o triângulo;
rasga a direcção, o sentido, como um vulcão ao inverso
que estica o relevo e aplana a superfície -

na imensa planície há sempre um caminho -

Dizia-se em Oachaca

Dizia-se em Oachaca



Falava-se em Oachaca da tua sede e de uma menina que injectou petróleo no peito – Cristalizou da sua boca um líquido em fogo a formar-se no canto do lábio em ponto de açúcar, em ponto de sol e fuga e conjunto de limões e conjunto de homens que acedem os faróis: e descia da sua boca, pela casa, pelo chão, descendo as escadas, descendo o passeio, descendo a montanha, e pela montanha abaixo descia um sol líquido adocicado pela memória de todos – toda a memória do mundo a descer como um degelo solar pela montanha abaixo, todas as montanhas abaixo: À beira do mar pensava-se que o Vesúvio tinha irrompido; Todos saíam para os seus trabalhos e acendiam todos os faróis vermelhos que anunciam a nova era e os faroleiros entravam com uma mensagem nova, e as mulheres dos faroleiros iam aos faróis levarem um tuparware com sopa e trazer a roupa suja para levar, e sacavam a roupa suja e voltavam a levar a roupa suja. E faziam amor com eles no cimo de todos os faróis. E da montanha descia a memória em direcção ao mar, em ponto de sol, em ponto de fuga adocicada: Fizemos um pacto com a vida e com tudo quanto flui. A santa injectou petróleo e cristalizou da sua boca um fio que caía ardente – Todo o sol, carregado de sal e doçura a entrar na veia de cada heroinómano, de todos os amantes… Iam para perto dos faróis: às seis e trinta: por baixo da ponte da Arrábida um carro estacionado com dois amantes, os vidros embaciados. Depois ele abre o vidro e acende um cigarro de haxixe, o vento do mar entra-lhe no carro e bate fresco e quente ao mesmo tempo na cara dos dois. Ela baixa-se, encosta-se contra o peito dele. Sente-lhe o coração. Leve e seguro. Ele passa-lhe suavemente as mãos pelos cabelos. Beija-lhe as orelhas. A menina em directo para a CNN a injectar leite condensado no peito para afastar todas as nuvens que são rios inteiros em forma de vapor a flutuarem. Não era o quê? Dizia-se o quê? Em Oachaca. Falava-se de febre e limões, de beijos na boca que podem não acabar, de línguas entrelaçadas, de mãos dadas, de mergulhos no mar. Falava-se de Pedro Abellardo e Heloísa, de Mariana Alcoforado e de Alejandra Pizarnik.
Diziam as raparigas de cabelo curto, com a boca cheia de cerejas negras, que o sol podia um dia não vir. Os Atlantas esperam-no, fazem um pacto com ele, nós com a vida. Créme de la creme pela montanha abaixo. O padre de Hiroshima a apanhar o sol no fundo da montanha. O padre de Hiroshima a meter um bocado na boca. A beber o degelo: a apanhar as sombras do chão. A prendê-las com molas no estendal - E o padre de Hiroshima, como a mulher dos faroleiros e dos cortadores de carne,, a estender também a sombra dos cogumelos e dos prédios que derreteram para o chão e a sombra dos lírios e dos corvos e a pegar fogo com o seu isqueiro, às sombras das girafas, de todos os homens, animais, plantas e coisas: Adora, como todos a palavra “húmido”e o seu deus não é palavra e não se escreve por palavras e não sabe ler nem escrever. E ler nem escrever ajuda a encontrá-lo e ler e escrever não é nenhum deus: Dizia-se em Oachaca que o sol viria sempre e isso chegava aos homens que levavam os seus burros pela manhã nos caminhos de Oachaca. Passava um carro, um camião, os dois amantes por baixo da ponte Arrábida. Vão à bomba de gasolina comprar tabaco e cerveja em lata. Voltam para o carro abraçados. Dizia-se em Oachaca que o sol lhes ia entrar no peito: Dizia-se em Oachaca que nós somos todos os outros. Uma roleta russa de mel, para diabéticos enquanto descem flocos de neve para dentro das bocas negras. Um nevão que cobre África. Falava-se em Oachaca da minha vontade de te abraçar. Falava-se de um derrame, na artéria do coração, um derrame de petróleo doce e branco como o leite condensado ou o leite gordo das baleias. Um petróleo injectável: Falava-se disso em Oachaca enquanto todos os carros passavam para o trabalho. Falava-se com febre e as mãos a tremer, outras vezes com calma e com a ajuda do mezcal e tequilla. A sombra dos lírios violava a sombra dos homens. E a febre dos homens entrava nas mulheres: Dizia-se tudo isso em métrica sáfica e escrevia-se nas paredes dos cafés, das casas, das escolas e de todos os edifícios públicos, o quanto te Adoro. O Padre de Oachaca ouvia e secava as sombras e secava os rios e esvaziava os mares com o seu balde de plástico: um trabalho como o de Sisifo. De cada vez que se contém o choro os rios sobem mais um pouco. Falava-se em Oachaca da febre dos búzios, de pernas entrelaçadas, de braços entrelaçados, de estrelas entrelaçadas. As mulheres dos pasteleiros acordavam a meio da noite, com as suas meias de lã grossa, para virem abrir a porta à estrela que com todas as suas pontas batia em cada porta, e entrava dentro das casas: Uma estrela feita de solidariedade, que cresce quando as pessoas se abraçam, que é só febre, sensação e calor. Contavam-se histórias da estrela, de todos nós, novelos inteiros, falava-se de cristais líquidos, do sonho das gémeas siamesas, da febre que causa o degelo: de tudo isso se falava em Oachaca.

Ode que ferve

Ode que ferve
…………………………………………………………………………………………

Vários comboios se descarrilam dentro do meu peito, várzea
à noite com muitos pirilampos acesos:
fervem e cruzam-se todas as linhas -
uma pirâmide de olhares cruzados em fogo,
muitas rotundas, auto-estradas, viadutos,
linhas de metro, passa estridente um comboio a alta velocidade, bebo toda a cidade
e caio rotundo para o chão -
sinto o suor de todos, o doce espasmo de uma jovem etrusca e todo o
Sol a incendiar-te o sorriso: fizemos um pacto com ele, com a vida com o futuro (Comboio estranho que derrete) fizemos um pacto com tudo que fluí, as linhas entrelaçaram-se, sinto a tua pulsação no meu peito e beijo-te os pulsos, a ansiedade nervosa da cidade, o doce espasmo das borboletas e a
Contracção de cada recém-nascido que parte –
A febre recheia a cidade –
O peito cheio de praças e cidades inteiras por dentro, viadutos túneis, contigo em cada esquina, dentro de cada café – com o pôr-do-sol dentro dos pulsos – a injectar o sol líquido no peito, não há mais caminho para trás – tenho a tua sede de futuro, são seis e vinte da manhã e a cidade acorda e adormece ao mesmo tempo – Sinto o calor de todos os que aquecem – A cidade a subir-me pela espinha dorsal, como uma nuvem branca, quando te abraço faço um pacto com a Vida
A cidade chama por nós e faz nós dentro de nós, tudo flui a uma velocidade frenética e todos os poetas futuristas, italianos, russos, franceses, portugueses, espanhóis levantam a cortina pesada da noite à velocidade do dia – enchem os teus olhos de sol – bebo por eles toda a cidade, todos eles sabem quanto te amo (cidade industrial, ceroulas, pastor alemão, civilização assustada, seringas e preservativos no chão, cave com vários fundos húmidos) a boca cheia de vidros – lambo-te o peito, os pulsos, os dentes, a língua (uma abelha na auto-estrada) o relógio de sol funciona à noite – se formos rápidos e seguirmos o dia – quando se patina sobre gelo fino a velocidade é a única salvação – e aqui cito todos os que não disseram a frase porque a sabem e sabem que o tempo corre – Sinto todo o desconforto dos cães à toa antes de serem atropelados
estou nas mãos dos fabricantes de carros que atropelam os cães, nas mãos dos operários, nos muros contra os quais urinam, os operários com as suas mãos – com a linha da vida a arder até ao pulso, e no fim do dia as mesmas mãos com a linha da vida a arder, ou várias linhas que se cruzam, a segurar o pulso da mulher, a acordá-la, a segurar o pulso de todas as mulheres dos operários – preciso tanto de calor – sou a sede, a raiva, o medo, a Vontade líquida de estar dentro de ti, sou líquido e fervo por ti dentro, amo os teus olhos a tua boca os teus dentes os teus pulsos os teus medos as tuas inseguranças as tuas dúvidas, os teus tornozelos, a tua saliva, a tua língua, os teus olhos, a tua boca, os teus dentes, amo os teus braços, as tuas mãos, braços, pernas, pés, e atravesso a peito a tua nuca quente, o teu peito a nado, sou líquido – vejo pelos teus olhos – todos – beijo-te os tornozelos, se penso em escrever um poema sobre o fogo lembro-me da bombeira voluntária de vinte e um anos que morreu a combater os fogos deste Verão – continuamos a subir – são 6:35 da manhã e a cidade acorda por ti adentro
Vejo por trás de ti
Por trás de nós
Por dentro de nós,
a cidade acorda: o sol dos teus olhos a injectar-me no peito uma Vontade Nova – Em tudo Nova – Amo tudo o que ferve
a noite láctea que te atravessa o peito de Calor
Ode que ferve e liga pelo skype,
nado por ti adentro

domingo, 24 de outubro de 2010

you are welcome to elsinore


Cesariny " linha de água"


Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mão e as paredes de Elsinore

E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmos só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

Mário Cesariny " Pena Capital "

Pepe e Luena - um encontro no deserto


Hughie Lee-Smith 1987



- Pepe, há dois anos que não te visito. Vejo-te dentro deste teu mundo, rodeado de muito pouco e de mim nada sabes. Deixei crescer a barba. As calças de ganga são muito justas, apertam-me e causam o incómodo calor. Tenho sede. Gosto da tua camisa garrida, podia descrever-te as cores como figuras que se movimentam na névoa quente por entre pós minúsculos, sobrevoando. No entanto, só me lembra o forte cheiro do mar, uma maresia de lapas, mexilhões e limos verdes. Estando tu aqui no meio do deserto, neste horizonte de nadas, como me sentes, quem sou eu para ti?
- Amigo, como te enganas. Vejo-te bem. Não és o mesmo. A voz cansada. Vejo-te nos intervalos da aragem que te desenha, que me traz sussurros de alma, os contornos do corpo. Distingo o aroma lavanda que te envolve, o escorrer lento de gotas que se esgotam do alto da testa às fissuras da trama do tecido, vaporizando de novo, separando sais! Sinto-me e sentes-me. A energia que transmites é a dádiva natural do Sol durante o dia, das estrelas ao chegar a noite.
- Pepe, tu afinal vês para além da luz! Sinto-te calmo, seguro. Essas tuas botas altas, couro gasto, não serão pesadas, desconfortáveis? Esta casa também ela, como há muito tempo não via, de tábuas pregadas em inclinações de acasos, assimétricas, neste lugar tão isolado, longe de tudo, não será imprópria, despropositada?
- Amigo. é apenas um ponto, uma pequena parcela isolada do universo, a minha gota do grande oceano que ao contrário do teu está por cima. Seremos sempre irmãos porque esse mundo que vês como teu e esse mundo que é o meu, ambos se formaram do mesmo nada, a intriga permanente de dualidades, corpo e espírito, energia e massa. Neste momento, do mesmo modo, habitamos o mesmo céu.

Encontrava-me de costas, mas pude perceber Luena, em passos lentos aproximava-se. Sabia da sua existência, sabia que estava para breve a sua união, admirava-lhe a coragem, com um cego no deserto. Pressenti o esvoaçar leve do vestido que agora ao virar afagava a pele morena acima do joelho, na lentidão contínua dos passos.
O baton era excessivo, na miragem ardente surgiam as curvas de um cartaz de Moulin Rouge, muito longe dali.
Os lábios permaneciam fechados embora dentro de mim, um ruído de vozes de outras mulheres, de outras histórias, uma viagem de sonho, avivando em surpresa memórias esquecidas.
Quando a nós chegou, abriu o sorriso luminoso, estendeu a cada um o fruto da árvore do pecado original, lustroso, brilhante, improvável num cenário feito de silêncios, numa poesia de gestos.
Na primeira dentada, minha, dele, os sucos refrescantes do néctar, em uníssono acariciaram os segredos da alma, saciaram a sede de forma doce, mas não tanto, quanto a voz de Luena num eco cristalino:
- Estas maçãs são uma delícia!

sábado, 23 de outubro de 2010

a importância da chave do mundo é relativa


Michael Maier



geralmente é no laranjal que sobrevoam os aromas
onde não desesperam as flores inamovíveis
nem as pequenas aves de olhos circulares
em saltos esplendorosos sobre a relva.

a importância da chave do mundo é relativa
quando a porta abre no corredor vago
e o arco do céu é na seguinte.
interessante é o lugar onde serpenteiam borboletas
em prolongamentos de desenhos animados;
círculos de cores, manchas de tinta
movimentos de escrita, palavras.

a realidade verde dos passos, no laranjal, olha em frente
e nunca pisa as flores. decorou na inclinação do sol
qual a sombra e o benefício dos pontos cardeais.

as flores exigem tanto e são muito delicadas
há que admirá-las, senti-las como um fogo na garganta
abrir por vezes um lago de silêncio e dar espaço -

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Trago-te ao espaço da janela




Trago-te ao espaço da janela.
De novo surgiram deste lado da rua.
Em voz baixa disse «uma alucinação». A
única resposta foi entrar em casa
subir ao quarto mudar de roupa
ser jovem com quem soube bem ser jovem
sábio com quem quiseste ser sábio
velho com os velhos.
Trago-te para perto da janela
o rio vê-se daqui.
A cor da terra circula.

«Talvez seja a morte» «não»
«se for a morte o coração baterá mais ou menos forte».
O corpo
não tem grande lugar.

João Miguel Fernandes Jorge, in "Meridional"

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Je pense à toi ( poèmes à Lou)


Salvador Dali " Cabeça de nuvens" Dali 1936



Je pense à toi mon Lou ton cœur est ma caserne
Mes sens sont tes chevaux ton souvenir est ma luzerne

Le ciel est plein ce soir de sabres d'éperons
Les canonniers s'en vont dans l'ombre lourds et prompts

Mais près de toi je vois sans cesse ton image
Ta bouche est la blessure ardente du courage

Nos fanfares éclatent dans la nuit comme ta voix
Quand je suis à cheval tu trottes près de moi

Nos 75 sont gracieux comme ton corps
Et tes cheveux sont fauves comme le feu d'un obus
qui éclate au nord




Penso em ti minha Lou teu coração é a minha caserna
Meus sentidos são teus cavalos tua memória é minha luzerna

O céu está cheio esta noite de sabres de esporas
Os artilheiros partem na sombra carregados e prontos

Mas a meu lado vejo constantemente a tua imagem
Tua boca é a ferida ardente da coragem

Nossas fanfarras eclodem na noite como a tua voz
Quando vou só a cavalo trotas a meu lado

Nossos 75 são graciosos como o teu corpo
E teus cabelos são fulvos como o fogo de um obus
que rebenta a norte.

Guillaume Apollinaire, IV, Poèmes à Lou

ápice


Man Ray " O violino d'Ingrés" 1924


revela-se uma unidade de destinos;
folhas pousadas no chão no seu último registo
como as dos plátanos , tão coloridas
e passos por cima naquele olhar angular e dirigido –

libertam-se os fumos dissonantes, subjectivos, a divagação das pinhas
quando ainda próximas de chuvas e vento, não à muito tempo
na presença alta dos pinheiros, enquanto
enquanto não se assume a intenção e o segredo;
a chave de miríades sensitivas, a essencial filosofia
a imponderável e permanente chama;
silêncios e paralelismo –

as águas da nascente foram titubeantes
quase presas, de poucos avanços, sem ganhar terras
sem descer montes, sem ganhar leitos, sem ver as pontes –

as águas da nascente são longas, largas e fluídas.
as margens ? de árvores tatuadas
inscritas de símbolos, marcas íntimas –

os pássaros planam planos por sobre
as curvas insinuantes e rumorosas do agora rio.
as rochas arredondam-se e despem-se sem frio.
separam-se as ausências e cessa o grito
a voz rouca do céu , do relâmpago, tão bravio –

destino uníssono
múltiplos dias de melopeia
linhas do mesmo linho
cordas de um piano
teclas agudas de um violino
ápice desvelado sem neblina –

passou pouco tempo. bem sei.
mas o que é o tempo?
o que vale o tempo?
senão o recíproco ?
quando recebemos e somos dádiva
no signo, na alma, na transparência

como quando se chora de alegria –

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Caligrama





reconheça
essa adorável pessoa é você

sem o grande chapéu de palha

olho
nariz
boca

aqui o oval do seu rosto

seu lindo pescoço

um pouco
mais abaixo
é seu coração
que bate

aqui enfim
a imperfeita imagem
de seu busto adorado
visto como
se através de uma nuvem

( Tradução retirada de um site "Antonio Miranda")

era adepta do ritmo seguro dos plátanos




“… era adepta do ritmo seguro dos plátanos, defendia a botânica. Primeiro com o pai, depois com o marido, gostava de passear pelos campos. Ao observar um sobreiro, reconhecia a sua própria natureza. Ao observar uma erva acabada de nascer, também; ao observar um pardal, também; um pavão, também; um girassol, também; um choupo, também. “ pág. 38

José Luís Peixoto “Livro” Quetzal

domingo, 17 de outubro de 2010

impera o enigma nas páginas brancas do pensamento


Paul Klee "angelus novus" 1920

folhas secas anunciam o ruído na demorada estação, descalça
nos pés rugosos das árvores, em canteiros redondos, de pouco espaço .
nos passeios a permissão abandonada de castanhos e verdes desbotados
um fim de tarde, ruas estreitas, sombras, grandes –

passo a passo, por cima de vestes despidas durante o dia
que ramos sacodem em voo breve e nervoso, sem calma ;
as folhas caem sobre os quadrados repetidos
quinze centímetros, os quadrados repetidos –

é tarde, impera o enigma nas páginas brancas do pensamento
o frio avança, move-se sobre a garganta e as folhas cantam -

o outono abre o sabre sobre o corpo qual cortiça flutuante
golpeia a água de onde se soltam gotas, impulsivas e reconstruídas
na dimensão de resistência que sempre alcançam, a mesma forma;

limites infinitos e o oceano –

sábado, 16 de outubro de 2010

Ode à paz



Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,

Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
deixa passar a Vida!

Natália Correia

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

esta estranha surrealidade não tem nada de Breton




esta estranha surrealidade não tem nada de Breton
de Guillaume, a genialidade de Almada.
homens vulgares de palavras fáceis e actos regulares
de pecadores institucionais

não se compreende estes mortais que amealham
a benesse de serem lei e serem temporários
como lobisomens enformados de uivos
na noite escura e sem orgulho
de em duas metades, uma ser viva e articulada
e uma outra surreal e só cadáver –


(uma meditação de revolta não pela política mas por causa dos políticos)

Em comunhão com ninguém



Um convento fica longe da necessidade do mundo,
mas o amor fica ainda muito para lá do convento.
É como se não houvesse estradas para amar, ou pés
suficientemente descalços sobre as incandescências
da ausência,
e a reclusão no amor fizesse ela própria votos
de pobreza extrema,
escrevesse um diário da ingratidão
com o desmazelo,
e chegasse a uma fórmula de desviver
honestamente em comunhão com ninguém.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Quando me cansei de mentir a mim próprio


Van Gogh "A cadeira de Gauguin" 1988


Quando me cansei de mentir a mim próprio,
comecei a escrever um livro de poesia.

Foi há duas horas que decidi, mas foi há muito
mais tempo que comecei a cansar-me. O cansaço
é uma pele gradual como o outono. Pausa.

Pousa devagar sobre a carne, como as folhas
sobre a terra, e atravessa-a até aos ossos,
como as folhas atravessam a terra e tocam
os mortos e tornam-se férteis a seu lado.

A cidade continua nas ruas, as raparigas riem,
mas há um segredo que fermenta no silêncio.
São as palavras, livres, os livros por escrever,
aquilo que virá com as estações futuras.

Há sempre esperança no fundo das avenidas.
Mas há poças de água nos passeios. Há frio,
há cansaço, há duas horas que decidi, outono.

E o meu corpo não quer mentir, e aquilo que
não é o meu corpo, o tempo, sabe que
tenho muitos poemas para escrever.

(José Luís Peixoto, in "Gaveta de Papéis"/ Edições Quasi)

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

sim - de um e de outro lado do sentido


Max Ernst "Vox Angelica" 1965


sim, sem a contrariedade de um mal formado vento
afirma-se o tempo elíptico, o irregular diâmetro
o círculo incompleto;

vejo no fundo dos teus olhos a dinâmica da íris
a cor clara e líquida que transporta os mundos
e um pêndulo de arames, gigante
que oscila de encontro à névoa, sem ruído
oscila, e oscila, e oscila, mudo;
não ganha a forma breve do desvario
nem o discurso de um tempo exacto e límpido
surge de um e de outro lado
de um e de outro lado do sentido, o pêndulo
oscila, e protege e solta e larga e observa
e prende e imana como espada e como escudo

de um refúgio recíproco e dádiva azul –

Poetria/ Café Progresso

do urubu e da gaivota

a dele deitava-se negra


e desistia do ar devagar


a dela tremia de espuma


ao ângulo de um outro quebrar


e sem que as árvores os vissem


trocaram em asas caladas


a terra pelo mar

terça-feira, 12 de outubro de 2010

perguntou porque a palavra saiu destituída de sonho




duas vezes repetiu a palavra, real e objectiva
para que não mais caíssem linhas cortadas, águas
de gravidade, sem transparência, sem limpidez
sobre a boca de terra húmida e fértil.

decidida e triste virou o olhar, ferida
contrária ao que supunha escrito.
não gostou, achou vulgar, perguntou porque
antes e de outra forma não lhe falou de fogo no lado direito
da mistura de cores branca e rubra cobrindo o rosto
de uma viagem de joelhos, mãos estendidas
o estado febril, suor por dentro, palpitações de galope
voos de asas à volta dos postes, canções na língua de Jacques
um jardim de plantas de firmes raízes, flores descosidas
intermediárias e interventivas
um poema escondido sobre buganvílias, brancas e suspensas.


uma maçã luzidia rolou em desafio
indício, provocação, porque … a palavra, por duas vezes
saiu destituída de sonho, perseguida sem arte pela ausência emotiva
falta de sensível, insólida, inconstruída.

ergueu-se a nuvem de pó cinzento, ruiu o castelo
paus e espadas, as cartas negras de um baralho
sem vislumbre de ouro ou prata

e o tapete alado desfiou no peso plúmbeo da palavra
vulgar, repetida, por duas vezes, sem intervalo –

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

espumas

aquela direcção de espuma branca e sigo

o mar sobe-me pelas pernas

enquanto desce espreita

e de lado repete

é morno e sei que brinca

e a minha mão vai abrindo devagar

de polegar inútil ao líquido


de lado ele faz e desfaz as costas

e as pernas do meu desenho

molhado em séculos ao mesmo som

gasta tudo o que repete

e deixa-me as pernas vazias


é então que nesse espaço solto

entre ossos e mar

nasce devagar um engano de carne seca

de peso a quatro vezes a espinha


e o mar agora só sobe sem som

perpendicular a mim - a espuma

e uma cama velha de coral

domingo, 10 de outubro de 2010

Um céu e nada mais


Vincent Van Gogh


Um céu e nada mais — que só um temos,
como neste sistema: só um sol.
Mas luzes a fingir, dependuradas
em abóbada azul — como de tecto.
E o seu número tal, que deslumbrados
eram os teus olhos, se tas mostrasse,
amor, tão de ribalta azul, como de
circo, e dança então comigo no
trapézio, poema em alto risco,
e um levíssimo toque de mistério.
Pega nas lantejoulas a fingir
de sóis mal descobertos e lança
agora a âncora maior sobre o meu
coração. Que não te assuste o som
desse trovão que ainda agora ouviste,
era de deus a sua voz, ou mito,
era de um anjo por demais caído.
Mas, de verdade: natural fenómeno
a invadir-te as veias e o cérebro,
tão frágil como álcool, tão de
potente e liso como álcool
implodindo do céu e das estrelas,
imensas a fingir e penduradas
sobre abóbada azul. Se te mostrasse,
amor, a cor do pesadelo que por
aqui passou agora mesmo, um céu
e nada mais — que nada temos,
que não seja esta angústia de
mortais (e a maldição da rima,
já agora, a invadir poema em alto
risco), e a dança no trapézio
proibido, sem rede, deus, ou lei,
nem música de dança, nem sequer
inocência de criança, amor,
nem inocência. Um céu e nada mais.

Ana Luísa Amaral, in “Às Vezes o Paraíso”

sábado, 9 de outubro de 2010

a mulher mais bonita do mundo


Edward Hooper "Verão"

estás tão bonita hoje. quando digo que nasceram
flores novas na terra do jardim, quero dizer
que estás bonita.

entro na casa, entro no quarto, abro o armário,
abro uma gaveta, abro uma caixa onde está o teu fio
de ouro.

entre os dedos, seguro o teu fino fio de ouro, como
se tocasse a pele do teu pescoço.

há o céu, a casa, o quarto, e tu estás dentro de mim.

estás tão bonita hoje.

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.

estás dentro de algo que está dentro de todas as
coisas, a minha voz nomeia-te para descrever
a beleza.

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.

de encontro ao silêncio, dentro do mundo,
estás tão bonita é aquilo que quero dizer.

José Luís Peixoto, in "A Casa, a Escuridão"

o quarto de Van Gogh - punhos sobre a alma


O quarto de Van Gogh

começou por punhos pequenos na vidraça
o ruído batente, surdo e intermitente, incansado
em movimentos de alerta: acorda, é hora, acorda.
os olhos graves e exaustos eram portas pesadas
e a grande casa dos sonhos e da memória
um vazio, um grande vazio e um armário –

a chuva pediu ajuda ao vento, bateu com estrondo
a cor verde da gelosia, exterior, em desamparo
abandonada, acordou o sono ao som férreo de uma aldraba.

punhos de água sobre a alma e aos poucos se recorda a irrealidade
um novo espaço se desvenda como um filme de autor, em desespero;
último capítulo, os óculos sujos, as mãos suadas sobre o manuscrito
o enredo:

naquela noite era a selva. um actor saltava em altos de embondeiro.
uma liana, solta e leve, acenava numa sombra escura de vermelho.
um grifo escutava em silêncio o grito de floresta
esperava a hora da grande garra, do voo certeiro.
na clareira corria uma gazela dirigida à sanzala
onde onde onde
se esfuma a irrealidade.

sobre a mesa cai a jarra.
espalham-se as flores, escorre a água, mia o gato

acorda, é hora, acorda
punhos sobre a alma -
amanhã é sábado -

mas a chuva pára, o vento sossega
a mão ausente embala e o cérebro adormece

não quer saber de nada -

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Não adormeças


Gerhard Richter 1962

Não adormeças: o vento ainda assobia no meu quarto
e a luz é fraca e treme e eu tenho medo
das sombras que desfilam pelas paredes como fantasmas
da casa e de tudo aquilo com que sonhes.

Não adormeças já. Diz-me outra vez do rio que palpitava
no coração da aldeia onde nasceste, da roupa que vinha
a cheirar a sonho e a musgo e ao trevo que nunca foi
de quatro folhas; e das ervas mais húmidas e chãs
com que em casa se cozinhavam perfumes que ainda hoje
te mordem os gestos e as palavras.

O meu corpo gela à míngua dos teus dedos, o sol vai
demorar-se a regressar. Há tempo para uma história
que eu não saiba e eu juro que, se não adormeceres,
serei tão leve que não hei-de pesar-te nunca na memória,
como na minha pesará para sempre a pedra do teu sono
se agora apenas me olhares de longe e adormeceres.

Maria do Rosário Pedreira

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

A fome do firmamento

O amante é como um irmão gémeo morto à nascença.

O sol fecundou uma terra-planeta, casa breve parcialmente comida pela estrela rival predadora, devorada por dentes da carnívora galáxia.
A grande cortina cobriu a casa para que o último filho do amor sobrevivesse. Às escuras, sem ser visto para não desvanecer.
Metade do planeta numa eterna noite errando,
amputado.
A outra metade - a presa; arrancada de tão visível, de tanto ser luz, alimento desfeito no ninho das paredes da nebulosa sangrenta.
A casa não girou. Alguém esquecido de dar corda à nativa esfera pendente no universo, onde a noite é sempre noite desprovida de seda, o dia é sempre dia inseguro animal à espera da sua vez.
Onde a noite é cúmplice pela morte do amante.
Onde o que foi dia, e gente, e jardim da casa
morre na boca do pássaro.

Já lá vem o cometa batedor
de radar e garras -
o espaço crepuscular não tem opção.

caras entre línguas

caras calmas cheias de olhos que pairam lá em cima e brincam como o urubu. há um mapa no quadro da aula que falha como falha o ar condicionado e as caras são lentamente enfiadas em sacos enquanto rezam o sentimento de um ocidental.


a cidade não é a minha de rio assustado com as luzes da noite ou passeio das virtudes de gaivotas amestradas sem mãe. é uma cidade de cara tapada e pele de seringueira largada na esquina de um teatro triste de renda amarelada. dentro dela há arcas fundas azuis onde gelam peixes gigantes embalsamados com caras. ouvem-se os passos da mãe ao longe e o ar é quente de bicho a arfar e ninguém olha porque ali acaba a estrada.


e então a mãe vem lamber a cidade em rio mais largo que todas as línguas

antigamente havia apenas dois milhões de caras e quatro de olhos fechados, diziam as raízes. papel frio ou caras e os contos dos olhos demasiado quentes para encadernar. e dizem agora que o urubu brinca comigo e que há comida que só liberta o veneno ao sétimo dia para descansar. e eu descansei.


Manaos, 2010

desígnio de um passeio pela cidade


Kandinsky


a carapaça, pois a carapaça, de cera fraca
e apenas uma lágrima, chega, suficiente
para voltar ao estado líquido, um néctar de abelha
doce, cedendo à luz da seda, ao sentimento
triste, muito triste, como antigamente
de não ter :

ruas nas tuas mãos e areias de medida
parando o tempo – sem saída
margens de rios, afluentes plenos
– sobre a manta dos sentidos
e olhos caídos como águias sobre nuvens e calendários
esgotando os impossíveis lugares, como se presentes
e não imaginários, suaves e tácteis, duplicados
de cores enroladas nos braços e dedos como gazelas
pelos cabelos, pelos olhos, pela cara, pelas costelas
como desígnio de um silêncio desmentido
pelo ruído dos lábios -

e um sabor raro –