quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

engordando

na escuridão de afectos
há fome, há sede
uma fome faminta de fogo
uma sede sedenta de céu
em partículas de tempo encalho
num corpo do qual me alimento
inspiro odores que da pele se soltam
ferro os dentes alvos na carne rosada
dilacero secretos entremeios que torno meus
e eu engordo
vou engordando

bebo o sangue, grosso e escuro
da cor de reposteiro de sacristia
corpo e sangue d'alguém
alguém sem nome, sem rosto
anónimo, sem identidade
que importa! alguém. ou talvez ninguém
dos olhos sugo a alma
e é dela que me lambuzo
os dedos, o queixo
ponto alto do bródio, delírio do palato
e eu engordo
vou engordando

até nos ossos de marfim afio os caninos
e a seiva leitosa sorvo em orgasmos sacudidos
seca. deixo-te seca.
pele e osso. transparente como um cadáver.
folha seca de Outono que se calca e quebra
num som de estalidos debaixo dos pés
foguetes em dia de festa. sem festa
seca como uma folha de papiro
amarelecida, envelhecida antes do tempo,
com o impiedoso bater dos ponteiros
seca
numa nudez frágil de alma depenada

de um golpe desprendo-me
arrumo desarrumada, num caixote qualquer,
sem etiqueta, na minha memória mais remota
tão mais que já perdi e de vez esqueci
levou-te o vento do norte
em mil grãos de poeira, desfragmentada
outro chão, outro colo.

na escuridão de afectos
um outro corpo do qual me alimento
e eu engordo
vou engordando

Clara Oliveira

O escritor de olhos oblíquos


Kazimir Malevitch "Retrato do compositor" 1913

o escritor de olhos oblíquos escreve muitos livros.
o vértice que equilibra.
fala sempre de gatos perdidos e personagens vagos;
divagam em atmosferas desconhecidas,
fazem-se ao vento, fogem nos montes, evolam-se por magia.

o último gato chamava-se kafka e era branco.
segundo os vizinhos habitava o fundo de um poço
de uma casa abandonada.
desapareceu às treze horas de um dia treze - hora de almoço.

um jovem de olhos oblíquos teve um acidente de mota,
coxeava para não ir escola. Usava um gorro de orelhas
e uma muleta que afastava as ervas invasivas
na casa abandonada.
sentava-se no muro do poço e miava baixinho.
depois lançava friskies e dizia que o gato falava.

um dia o gato disse:
atravesso do fundo do poço, a rua da madressilva
a travessa do sino, e chego ao bairro da china.
sobre o bairro da china há uma janela gradeada.
vê-se um jardim de árvores grandes e flores pequenas.
um jardineiro de olhos oblíquos e aros redondos
habita esse jardim. canta e dança junto à magnólia,
à buganvília, à aromática tília e junto à grade
de uma janela parada no meio da colina.


o jovem de olhos oblíquos não quer ir à escola.
prefere ler livros e falar com o gato que habita
o fundo do poço.
o jardineiro do bairro da china canta e dança.
habita uma cabana no cimo da grande tília
e tem uma antena para ver musicais da broadway.

o escritor de olhos oblíquos quando não escreve livros
corre a maratona.
retira vírgulas, transporta exclamações e reticências
acrescenta ou enfatiza demasiadas informações´
às fatias ou na íntegra.

o escritor de olhos oblíquos gosta de neblinas
da cor lisa dos bosques e das colinas,
da sombra das árvores e da natureza escondida
por onde sobem os esquilos, ressaltam as lebres
voam os pintassilgos.

o escritor de olhos oblíquos quando não escreve livros
também corre nas cidades.
sonha falar com os gatos que habitam as casas abandonadas
e todos os telhados;
contariam segredos, sementes de enredos
e o escritor pelas noites dentro, pelas manhãs fora
teria muitas letras e menos folhas brancas.

o escritor de olhos oblíquos diz que o mundo está torto
as cidades sabem a fumo e fogo
e são muitos os jardins habitados por casas.

já não se vêm tantos gatos -