domingo, 31 de janeiro de 2010

pensamento mágico


Kasimir Malevitch "Três figuras" 1932


tens tudo o que precisas: água mineral
bolachas de passas, dois livros policiais.
colocas a almofada de rectângulo alto
postura de sofá. desligas o rádio.
um tiro fatal. um homem de chapéu inglês
um anel grande, a inconfundível bengala;
prata gravada num pescoço de cavalo.
mil e novecentos e vinte a rua gelada.
passos lentos, dispersos de som grave.
queria articular uma defesa, uma palavra.
caiu sem ruído afogado na chuva, na lama.

tens tudo o que precisas: um café forte.
no balcão de mármore abres a máquina,
colocas a cápsula, um pouco de água.
duas torradas saltam no som de Clac!
duas colheres de mel silvestre, puro
alecrim e rosmaninho ao som de twist.
a doçura atenua a premonição do crime.
criar a atmosfera. Quatro velas acesas
gordas e curtas em cima de mesas.
duas amarelas, duas vermelhas.
luz ténue sem filamentos seguros.
as chamas movem as sombras.

não sobes ainda ao quarto.
sentas-te no cotovelo da escada, junto à chávena
no propósito de caírem migalhas da torrada
sobre as tábuas. aquelas ligações absurdas
que imaginam um longo bico de cegonha
recolhendo uma a uma, colocando no pires.
mas são só os dedos de tarefa obsessiva
que preparam o clima de suspense, o momento
no rectângulo alto, na cama, no local adequado.

tens tudo o que precisas: a noite, o livro.
usava uma carteira cara de fechos amarelos.
as luvas descalças sem os fios de harpa.
quando era nova tocava a 1ª de Beethoven
ao piano de forma memorável. O maestro
gostou tanto que anotou o dia, a hora, numa pauta.
mas quis o destino que as mãos de fada,
aquele rosto saído de uma cúpula da capela antiga
aquela voz que era linda, tivesse história trágica.
um anjo de submersas memórias, inquietado:
“obrigaste-me a ler os livros que não percebia”
“a tocar no orgão sanctus, sanctus, que detestava”
“vinte e quatro horas entre paredes fechadas”
“uma boneca de corda sem anseios de alma”
um eco, um eco, um eco, tiros de uma arma.
o corpo escuro, sem fala, incómodo, a mão na bengala.

tens tudo o que precisas: o pensamento mágico.
entras dentro do livro. O braço sobre o ombro.
abraças o vestido largo de rendas.”Shu!..Shu! Tem calma!”
há muito caiu o pequeno revólver, sem utilidade.
apagas todos os indícios.batem à porta. saem pela janela.
a tempo de ouvir, em três relógios diferentes
as duas da madrugada. Tem calma. Tens calma.

a almofada escapa. o corpo horizontal
liga um pouco de música clássica. É inverno.
mas a noite passa, e cada dia é menos um
antes da primavera. depois o mar. depois a praia.

tens tudo o que precisas: um olhar de enseada
que lava nas gotas de sal todas as gotas da alma
uma cimitarra de afectos do tamanho de um castelo
e inventas histórias de cidades, aldeias, igrejas,
duendes, animais que falam, leões que são gatos,
girafas atarracadas, rinocerontes garibaldis.
falas dos desertos cheios de água e uma estrada
de coqueiros onde dançam marcianos.histórias.

tens tudo o que precisas: observas os limbos.
nos intervalos da noite lês livros da colecção vampiro
e perdes o juízo na justiça de salvar heroínas
inocentes vítimas, indefesas, os necessitados
aqueles que tropeçaram sem ninguém ao lado.
e sendo assim adormeces muito calmo, reconfortado.
embarcas em muitos universos, reais, surreais
ou pintados. em barcas de rem, rem, rem
nos sonhos escondidos de pensamentos mágicos


tens tudo o que é preciso: vestes as folhas brancas
escreves poemas, na tinta líquida dos sentimentos.