quinta-feira, 13 de maio de 2010

Ana Luísa Amaral

Aquilo em que me posso tornar (assim, de repente)





Posso tornar-me num homem santo:
basta tomar regularmente os comprimidos.
Mas eu desconfio da santidade pálida, pública,
impávida dos comprimidos e detesto as soluções
da ciência quando é a fé que me pede
que desconfie de si mesma e me ensina
a desconfiar de mim mesmo e depois
da ciência, da santidade acelerada
dos compridos para descomprimir.

Posso tornar-me num homem rigorosamente honesto,
medíocre, de tão honesto,
e novamente honesto, de tão medíocre
mas para isso é preciso que a nudez, toda a nudez,
qualquer tipo de nudez, seja abolida
que acabem de vez com as ruas íngremes e desertas,
que a poesia morra na poeira
protestante das prateleiras
das livrarias
que amanhã nasça órfão
de uma mulher ébria
como Maeve
que foi a mulher mais livre
da História
da Irlanda
(e a Irlanda,
neste contexto,
é apenas aquilo que eu sinto
por ti)
só se essa mulher voltar a ser maltratada
pela inveja que é impotência dirigida
só assim – a lista estende-se,
mas não é entendível – só assim
eu posso ser honesto
daquela honestidade
que não interessa a ninguém
nem mesmo às raparigas.

Posso tornar-me num homem tornado
qualquer coisa que não lhe concerne.
Posso provar o obséquio de uma só e sólida
aspirina, mas a dor de cabeça há-de prosseguir:
as suas raízes surpreendem a farmacologia
moderna orientada apenas para pesadelos,
apesar de tudo, permissíveis.
Há uma voz miserável
dentro delas que cospe a aspirina.
Receio que a ciência e a fé não sejam suficientes
para me curar e iludir. Porque curar é iludir
a doença de existir de tal forma que a doença
desista.
Talvez ligue para a polícia e pergunte sucintamente
onde posso eu achar paz às duas e meia de uma manhã
que finge dormir à luz de substâncias irreveladas
na dormência, totalmente ilícita
apenas com o lençol das suas contingências
a destacar um orgulho que não é seu
deitada na cama comovente da despedida.