quinta-feira, 20 de maio de 2010

unir ao nada, todo o ar ser cor

Mundo do corpo todo
útil vagar em ritmo
sonoridade fácil
ilumina lugares
como deixando de ser
a humana voz na corda

19 dias y 500 noches - Joaquin Sabina

Música para cépticos (um caso de negligência médica)







O médico tinha acabado de desistir
de mim.
Ouvi o rufar de um tambor próximo
da expectativa mais negra.
O sexo exausto de um saxofone
na periferia da vida
anunciando
do alto das suas últimas notas terrestres
o nível de saturação da vertigem.
E o público, finalmente,
a aplaudir.

A sua sombra era uma poça de suor,
o suor da sua desistência traduzida
em transpiração, memórias vagas
de um quarto em Antuérpia
agora compelido num estranho número de sapateado
de dedos inquietos
sobre a pele proibida
da escrivaninha.

O médico pousava o estetoscópio
como um domador de serpentes
pousa a flauta na melodia
e dizia qualquer coisa incompreensível
enquanto atirava a espátula ao lixo e o olhar à parede
que se perdia nas sombras soerguidas
da descrição do problema
e o verbo que viria a seguir
começava já a brincar
numa cama de sangue
ao início da sua boca
como uma espécie de alegoria
com baixo índice de glicose
na certeza.

Amar começa por uma ligeira inflamação
nos bons princípios
- disse ele -
e depois essa música que me fala,
essa música é pertinente,
infectou, fez-se ver,
arrastou literalmente o senhor Humberto
para uma patologia amoral que o corpo nega
numa escola de desejo e espelhismos.

O senhor está a amar, senhor Humberto,
- continuou o médico, deixando um pouco a sua desistência
de lado, tentando convencer-me de que a música
que eu ouvia era apenas uma consequência deserta
própria dos seres com uma forte susceptibilidade
à voz amada, morta e constituinte,
e às suas inúmeras plateias de sentido
nem sempre do agrado de um Orfeu
com pouco jeito e paciência para descer
às profundezas do objecto.

Amar não tem cura, senhor Humberto,
mas também não mata ninguém.
Pode ter uma vida quase normal.
Faça longos passeios e divirta-se.
Evite apenas a profilaxia.

E mandou-me sair.

Mas eu não estava a brincar.
Nem a amar verdadeiramente
a vida.
E no dia seguinte,
enquanto o médico lia a notícia
do meu falecimento
passaram helicópteros do exército
cisnes da polícia lírica
e sinestesias com pedaços de metáfora
entre os dentes
doentes civilizacionais
com falsos apaixonados pela trela

e a tarde rebentou e a noite eclodiu
e o silêncio voltou a dar o exemplo
numa cidade onde ninguém existia
na acústica do outro
a não ser como ruído
ou revés.

Cantiga dos Ais



poema de Armindo Mendes de Carvalho (1927-1988)
dito por Mário Viegas (1948-1996)

como te chamas?


fotografia retirada da internet


não sabia porque contava histórias.
como o sol a chuva o vento acontecia.
eram duas da tarde no jardim das buganvílias
onde cresciam as brancas as mais raras
em armação de ferro e alumínio.

chegaram um e uma de mãos dadas ligadas
moravam do outro lado da estrada.
sentaram no relvado mais escuro da sombra
de uma latada ainda adormecida de bagos
em frente de um aroma claro que crescia
por trás de um banco e de uma bengala.

doze e doze vinte quatro e as mãos dadas.
a curiosidade pequena: aqui não há praia?

soltava uma das mãos e pousava.
a outra mão e pousava. De novo uma.
de novo outra. o queixo na curva de prata.
colocava a bengala de lado. Cofiava a barba.
no sabor da idade lembrou a história:


doze de agosto a tarde plana
por cima de duas três árvores uma ave
de peito claro e cauda rápida
parecia que chamava.

doze de agosto. Porto. a maré vaza
liberta areia muito acesa depois húmida
no preenchimento de pés de espuma e água.
o sol daquela hora é uma chuva de brasas
nos bicos dos ombros na beira do mar branco.
acima só andam os cães descalços
com as línguas de fora de lado.

doze de agosto melhor a barraca.
os olhos nos olhos indicam que os pés se tocam
dez dedos brancos dez dedos morenos
os brancos de unhas de cor.

como te chamas? – como as estrelas
como te chamas? – como as deusas
como te chamas? – açúcar de sobremesa
como te chamas? – como queiras

sobre a toalha laranja dos quadrados
um raio de poeira diagonal atravessa as riscas largas da barraca;
velas fortes de telas de algodão nas mãos de vento
como um balão de fôlego côncavo convexo.

doze de agosto não há qualquer cadeira
geladeira de sandes queijo ou marmelada
leite de morango ou limonada. água lisa
uma saca um saco duas toalhas uma cassete
posições várias de cohen leonard.
como te chamas? - dança dança

a voz clara e fina no feminino:
não é o mais importante vai vai
vai sem pressa como quando se descansa.
primeiro falamos do Verão e do Inverno
se houver encantos os verbos de verdade
definem as frases
encostam os ouvidos nas leituras
definem as curvas de caligrafias.
gostas mais de rios ribeiros
largos poços ou vastos mares?
falemos de programas de televisão
nada de exclusivos e defesas de ocasião
não queiras parecer, sê, sê como um piano.

como te chamas? – amanhã sabes.

continuaram de pés juntos como teclas
encontraram tudo o que era no que viam.
caiu na tarde uma leve cor laranja no mais longe do mar.

como te chamas?

de olhos grandes e cabelos sem trança
subiu apoiada na barraca beijou-lhe a testa
sorriu nos lábios dela:
amanhã à mesma hora e de surpresa
fala-me de flores para além da rosa
e não tenhas pressa
quatro estações tem a natureza
não vejo inverno chegou cedo a primavera
quem sabe
quando os olhos sentem
quando os olhos falam o coração sabe
adormece num conto sem data.

doze de agosto na praia do Porto.
a maré vaza.

levantou-se na dificuldade da curva da bengala.
doze e doze vinte quatro voltaram para casa
de mãos dadas.

uma música longínqua de um canto de pássaros
cravou-lhe no espírito uma melodia de força
um voo de garças que pousam e molham
as pernas altas de novo nas águas
e um sal grosso salvou-lhe os olhos
da secura de só palavras mudas sem nuvens
no jardim das buganvílias.

amanhã de novo o banco e as crianças
continuava a história
ocorreram-lhe muitos nomes e a resposta
como te chamas?

as claves claras de um sol de leonard
traziam o aleluia e a dança de uma valsa
nas posições várias das faixas.

caminhou sem a pressa do regresso
levava dentro da cabeça uma teia feita de cordas
melodias de um novo universo.

dobrou as voltas de uma chave pesada
curvou o puxador de pedra mármore ou seria ágata?
recolheu algumas migalhas de um bolo de manga

horas de lanche -

música

linhares da beira - serra da estrela
.© raquel patriarca

há uma música bonita
que me inunda a
memória
de gestos serenos
e dias de sol

uma melopeia de coisas simples

o encanto de uma
história
contada de cor

‘era uma vez
há muitos muitos anos
numa terra distante...’

o murmúrio de uma oração
e o toque das contas
do terço
o abrir -
- vagaroso
de uma manga
à procura de um lenço

o som da água
a correr no ribeiro
empurrado pelo vento
e o bailar da roupa
que se mergulha e esfrega
ao ritmo
sincopado
de uma cantiga sem tempo

o burburinho
dos dias de feira
o tamborilar das compras
na cesta
o toque dos sinos tão perto
o encadeado dos cumprimentos
‘como está?
vamos indo obrigada
até amanhã
se deus quiser’

o flautear de uma
gargalhada
no fim da brincadeira

o compasso do
caminhar
em direcção a casa

o estalar do
pão de trigo
à hora da merenda

o suspiro cansado e
fundo
ao pousar
as mãos nodosas
no colo
alisando
resignadamente
as rugas da pele
as pontas do avental

o sussurro doce de uma
canção
de embalar
o soluço de
um afago e de um
beijo
antes de deitar



há um silêncio surdo
que me ensopa a
alma
de ecos vazios
e ausências doridas

‘era uma vez
há muitos muitos anos
numa terra distante...’

aos avós

raquel patriarca
dezanove.maio.doismiledez