quarta-feira, 26 de maio de 2010

Este poema é absolutamente desnecessário


Joana Vasconcelos

Este poema é absolutamente desnecessário
pela simples razão de que poderia nunca ser escrito
e ninguém sentiria a sua falta
Esta é a sua liberdade negativa a sua vacuidade dinâmica
e o movimento da sua abolição
a partir do seu vazio inicial
Mas qual é a sua matéria qual o seu horizonte?
Traçará ele uma linha em torno da sua nulidade
e fechar-se-á como uma concha de cabelos ou como um
[útero do nada?
Ou será a possibilidade extrema de uma presença inesperada
que surgiria quando chegasse a essa fronteira branca
que já não separaria o ser do nada e no seu esplendor absoluto
revelaria a integridade do ser antes de todas as imagens
a sua violência inaugural a sua volúvel gestação?



António Ramos Rosa
in Deambulações Oblíquas

Kant

Vieram de longe para ver Santa Teresa de Ávila a espumar petróleo, óleo sobre tela, de grandes dimensões pintado pelo DJ Kant, o mesmo que Julian Artl considerava o único crítico literário digno do nosso século febril: O mesmo que era incapaz de ler um livro porque os seus dedos lhe tremiam e porque estava sempre com um cigarro na mão (não podia folhear). Contavam-lhe histórias. Da exposição fazia parte também um conjunto de retábulos que Kant pintou para a sua primeira exposição nos arredores de Berlim: “Uma Sagrada Família com o reactor de Chernobyl ao fundo”, ao lado de Uma imagem de Cristo e São João Baptista na Segurança Social”, E uma de “Soror Inês de La Cruz a ser possuída analmente por um cavalo”. O último painel era uma Última Ceia, num jardim, os apóstolos sentados por baixo dos guarda-sóis comiam lírios, que estavam nos pratos e nas travessas: Pedro comia um lírio, Simão comia um lírio, Judas e Paulo também comiam lírios e Jesus descascava a parte branca enquanto trincava a parte laranja, de uma forma que alguns críticos acharam obscena e outros críticos acharam extremamente sensual. A exposição foi bem acolhida pelas revistas de crítica de Arte e ao contrário do que se esperava, passou praticamente desatenta às críticas das Associações católicas. O prior de uma Igreja de Roma comprou os retábulos, para possuir pinturas sagradas de novos valores emergentes da pintura contemporânea.

Artl era um dos convidados para a exposição, escreveu-me depois de Berlim, falando de cada um dos quadros e da admiração que nutria por Kant. Disse-me que Kant o aconselhou a nunca mais escrever, enquanto não conhecesse a fundo a natureza humana. Artl disse-me que ia seguir o conselho: Perguntou-me se seria possível enviar-me por mail o catálogo com as imagens de Kant, e se havia alguma hipótese das imagens serem scanizadas em folha de gelatina. Eu disse-lhe que o cão já estava morto, ou quase morto, porque há muito tempo que não se levantava do tapete, tinha apenas espasmos de vez em quando, nos primeiros dias: Agora nem isso:

Está morto com estômago recheado com os seus últimos contos.


Nuno Brito

Três contos sobre Lírios



“A Literatura é um pacto com o absurdo…”

Rober Diaz


A cultura é o que fica quando tudo o resto é esquecido: Contra esta premissa Julian Artl cozinhou as doze folhas de gelatina onde tinha três dos seus últimos contos. O cão andava na cozinha. Vi no seu prato de comida misturada com um pedaço de ração uma folha de gelatina crua que o cão se tinha recusado a comer; estava endurecida, e dizia a marcador: A cultura é tudo o que deve ser esquecido: Julian foi ao prato do cão e pôs esta folha na panela onde já coziam outras, juntou dois xanax esmigalhados e açúcar.

Depois da gelatina estar pronta o cão comeu-a e ficou a dormir. Ele sentou-se na sala comigo e contou-me a sinopse dos três contos: um deles passava-se na Antiga Grécia e uma rapariga com uma fita azul na cabeça “masturbava um lírio” e depois disse: o lírio ficou viciado nisso, e esperava a rapariga, que umas vezes aparecia e outras vezes não; e o lírio começou a murchar: o segundo tratava de um escritor que tinha ganho uma bolsa de criação literária na Islândia e conseguiu, junto do consulado, autorização para visitar o vulcão em erupção, apresentando um projecto de criação inovador que tinha permitido ao júri pressionar as autoridades civis para o autorizarem como o único membro externo à protecção civil e aos bombeiros a visitar a ilha. Foi de barco e conseguiu junto dos comandantes autorização para subir ao vulcão com o seu último romance e um lírio; atirou o lírio para dentro do vulcão, depois atirou o seu último romance, em fases de provas e exemplar único a aguardar publicação – Depois atirou-se a ele próprio para dentro do vulcão. O terceiro conto tratava de uma rapariga que em 1945 vivia perto de uma aldeia de Nagasaki e tinha por costume masturbar os lírios: um dia saiu de casa e viu um cogumelo de fogo a elevar-se no ar, e viu as sombras espalharem-se pelos campos e no lugar dos lírios havia a sombra dos lírios: Ela meteu uma fita verde no cabelo, e tirou as cuecas por baixo das saias. Sentou-se no chão e esperou. O quarto conto era sobre um homossexual não assumido que entrou numa sex-shop de Roma, perto da estação de Octaviano para comprar um dildo. Tocou à campainha e a porta abriu-se automaticamente; Desceu uma escada onde estava um indiano ao balcão a falar com outro indiano que via num monitor extractos de um filme porno, alguns clientes estavam a ver os dvd’s. Dirigiu-se à secção dos dildos, escolheu um e foi pagar. O indiano olhou para ele de forma perversa; começou a persegui-lo nos dias seguintes. Não me contou o fim da história (que o cão tinha comido – folhas de gelatina gravadas com marcador vermelho cozidas com xanax e rum) O cão dormia, com os quatro contos dentro de si, e isso não lhe provocava qualquer reacção: apenas uma dependência pela medicação e o álcool que o fazia seguir com atenção todos os gestos de Artl quando este escrevia ou estava na cozinha.

Tudo isto Julian Artl contava-me enquanto fumava um cigarro e dizia que em pouco tempo ia para Berlim, onde o esperava Kant, o DJ Kant, eu disse que não conhecia o DJ Kant, ele disse-me que era um homem de uma inteligência fora do comum que nunca tinha lido um livro no mundo mas que era o único crítico capaz em todo este início de século. Disse que não lhe ia levar os contos, porque os contos tinham sido comidos pelo cão que continuava a dormir. Mas que queria falar com DJ Kant sobre literatura: Fui levá-lo dois dias depois ao aeroporto.

Nuno Brito

Linha

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Foi um sósia negro que atendeu do outro lado da linha: Já tinha ouvido falar dos sósias extra-continentais que viviam com feições e traços expressivos iguais a homens de outros continentes, apenas com as naturais distinções de raça (palavra obscura). No Dicionário Britânico Universal havia uma entrada para este tipo de sósias, que tem no fim uma extensa bibliografia e lista de célebres sósias inter-continentais.
Do outro lado da linha ouviu a sua própria voz, a penas com um sotaque mais carregado do centro de África, um sósia dos PALOP, que rapidamente identificou consigo próprio. Era a linha de apoio ao suicídio, e a pastilha cor de rosa encontrava-se em frente na mesa, ao lado cinzeiro cheio e de um copo de whisky.

Falou ao sósia, da sua vontade de cometer um nascimento oposto, e contou-lhe a sua história de desempregado. De antigo funcionário nos serviços de apoio ao suicídio da Direcção Geral de Saúde – Agora falava com um colega seu, que lhe parecia inexperiente e que era ele próprio numa versão negra.

Conteve as lágrimas ao falar do último relacionamento; da queda no álcool, do tempo na faculdade de Psicologia, dos conturbados anos do Mestrado. O negro não dizia nada: Sendo ele próprio que falava do outro lado da linha, sabia já a história completa e não deu nenhuma espécie de conselho, não aconselhou a psicoterapia, não passou a chamada a outro especialista, não perguntou antecedentes, o médico que o seguia, não mostrou interesse em saber quais os fármacos psiquiátricos que estava a tomar.


O silêncio manteve-se durante muito tempo entre o mesmo homem de um lado e do outro da linha, que se tornava enferrujada, comunicação tornava-se impossível e muito negra; Porque eram a mesma pessoa, inteiradas do mesmo caso clínico, o silêncio prolongou-se – Pegou no copo de whisky e na pastilha cor de rosa, acendeu outro cigarro e ouviu o isqueiro acender-se do outro lado da linha.


Nuno Brito

maio de 99 - a lua descida




levanta o braço de uma boneca bela de porcelana.
penteia imaginárias pestanas de olhos grandes.
torna oblíquo o cabelo lustroso e castanho.
tem uma estrela tatuada na testa.
dobra o joelho e passeia a passadeira
incontornável de vermelho.

maio de noventa e nove. noite. quarta – feira.
na casa de aldeia
desfia-se um terço de água benta, um rosário
contas pretas de novena e brancas de marfim
na origem de moçambique, longínqua.
brilha no canto de uma quina aguda
uma barriga grande de cobre: alambique
dádiva de um tio emigrado na Turquia.

dentro da cabeça de Madalena
apressam-se os fios sobre a boneca
pernas da marionete passam em rodopio
por muitos lugares escondidos
enquanto prossegue a melodia, a rotina.

vem ali o rinoceronte.
naquele lago há um crocodilo.
a zebra é um cavalo de listras.
o elefante sacode uma tromba de gritos.
o urso é amigo.

mãe? se houvesse uma entrada secreta
um nó de tábua que saísse
a minha boneca podia ser Alice.
( a mãe na ladainha)

mãe? se voasse num tapete mágico
até ao minarete arábico de lua descida
podia ser Jasmine.
(riu-se o alambique)

mãe? se tivesse os sapatos de morango
voava eternamente depois da grande ventania
olhava as nuvens de cima
tocava o arco- íris.

dobrava o joelho e passeava a passadeira
incontornável de vermelho.