sexta-feira, 18 de junho de 2010

No dia da morte de José Saramago, por Sylvia Beirute



















NO DIA DA MORTE DE JOSÉ SARAMAGO

{poema de homenagem}


agora, livre da coadjuvância das afectações: os
deuses se escondem nas artérias do teu
silêncio, na tua fraqueza perfeita porque
sem o hábito de se auto-observar.
voltaste a ti: numa outra intermitência da morte, com
o sublime que é tudo aquilo que ignora um todo e
conduz uma perspectiva até ao quociente interno
de uma invisibilidade que fala através
do teu questionário incicatrizável.
e daí tudo vês: vês-me faltar de propósito à
conclusão do meu poema, vês o peso
da omnipresença do abstracto, da hora antiga,
vês as minhas infâncias e urgências juntas e tar-
dando hoje em se converterem, devolvendo-me
ao que eu era: ao início do dia.

Sylvia Beirute
inédito

Caminhavam de mãos dadas


fotografia retirada da internet


A mesa de pernas de aranha incomodou a leitura.
A ténue realidade de uma luz no dia ainda pouco claro
Encaminhou na mesma página o boomerang de palavras:
Caminhavam de mãos dadas.

Descruzou a perna e colocou na frente um banquinho
Com ar de porco espinho; serviu de almofada a solas gastas.
O focinho apontava no mesmo círculo de palavras:
Caminhavam de mãos dadas.

A mesa de pés de aranha sem teia era infeliz.
O porco espinho na impossibilidade de se enroscar
Fincava uns olhos horizontais e apontava o nariz.
O sofá como colchão de água, balouçava e enredava
o eco largo de voz cava:
Caminhavam de mãos dadas.

O livro súbito fechou na mesma frase.
Súbito conversou com o tapete magoado
De risca verde alface no abismo do sofá.

Uma espiral nos olhos negros insistia
Rodava, rodava, nos olhos fechados:
Caminhavam de mãos dadas -

LIFE PRETENDING DEATH




Quando o mote é o amor finjo-me de morto
e mudo de conversa, de Veneza e de canal
e de hábitos nocturnos e tristes
e quando não posso fingir-me de morto
uso uma técnica em tudo parecida à vida
que um beijo plagia
na sua perfeição sufocante.

Pratico um certo tipo obscuro de sedação
procuro que a minha escola hipnagógica
aflija a tua pele de instantes
irreversíveis.
Por exemplo:
interessa-se sobretudo que o meu nível de consciência
se entregue a uma diminuição radical de luz e periferias,
mas que nunca perca de vista
o assalto que é preciso fazer sempre
que o outro morre também
quando o mote é o amor
e as práticas obscuras de ambos
acusam uma intimidade rasgada
precisamente no mesmo vínculo
perdido.