terça-feira, 22 de junho de 2010

estranha chuva de cinza e plumas


Cartier Bresson


fujo da densidade das palavras como de uma armadura pesada
que me baixa os braços sobre dois metros de espada
afonsina, como o nascimento de uma nacionalidade.
sonha-se uma batalha e o resfolegar avantajado do cavalo
que nos avisa: olha ali daquele lado, o sarraceno
não te distraias do perigo;
o perigo das palavras como raios de tempestade
a ser chama, a ser fogueira, a ser a imensidade
de uma sobrevivência original.

a densidade das palavras não perdoa porque não é confessionário
pode ser a voz aberta da terra, do ar, da água, da águia
do jaguar, do tigre, numa selva de fumos
fumos de nicotina a dobrar os alvéolos, os foles
tardios de uma transpiração de ar, oxigénio
e dióxido de noite, densa noite, densa noite
ou denso dia que arrepia e eriça a pele
atenta aos sinais de mais puras nevralgias.

fujo da densidade das palavras e tropeço sempre
em algumas claras facilidades : ver azul na cor azul
o branco no branco, quando nada se limita.

não se pode ter desejo de limite
fronteiras de desconhecido.
a vida existe porque não há morte.
agora. a vida existe.agora.forte
na exigência de um terramoto.

queria ser gazela suspensa e não conhecer o tempo
que conhece o tempo e interroga o tempo
de toda a falta de tempo. Irrita-me a rotina do metrónomo
não fazer pausa no filme para mostrar um torvelinho de pó
a dançar no concêntrico crescer circular, a crescer, a ser
criança de furacão, a cintar braços e medos
a rodar batimentos . à roda. à roda. à roda.
a largar de novo o botão, voltar ao filme, voltar à estrada.
de novo até ao instante seguinte, naquela esquina
um novo tsunami, um fogo de artifício.

fujo da densidade das palavras como se fossem lebres
a correr atràs de um mundo
um mundo imediato que pode ser leveza
ou que pesa, pesa como ferro, como chumbo
sem flutuar como tábua, sem ser asa –

fujo da densidade das palavras
e todas os dias as cruzo na mais estranha chuva
de cinza e plumas -