domingo, 24 de outubro de 2010

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Cesariny " linha de água"


Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mão e as paredes de Elsinore

E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmos só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

Mário Cesariny " Pena Capital "

Pepe e Luena - um encontro no deserto


Hughie Lee-Smith 1987



- Pepe, há dois anos que não te visito. Vejo-te dentro deste teu mundo, rodeado de muito pouco e de mim nada sabes. Deixei crescer a barba. As calças de ganga são muito justas, apertam-me e causam o incómodo calor. Tenho sede. Gosto da tua camisa garrida, podia descrever-te as cores como figuras que se movimentam na névoa quente por entre pós minúsculos, sobrevoando. No entanto, só me lembra o forte cheiro do mar, uma maresia de lapas, mexilhões e limos verdes. Estando tu aqui no meio do deserto, neste horizonte de nadas, como me sentes, quem sou eu para ti?
- Amigo, como te enganas. Vejo-te bem. Não és o mesmo. A voz cansada. Vejo-te nos intervalos da aragem que te desenha, que me traz sussurros de alma, os contornos do corpo. Distingo o aroma lavanda que te envolve, o escorrer lento de gotas que se esgotam do alto da testa às fissuras da trama do tecido, vaporizando de novo, separando sais! Sinto-me e sentes-me. A energia que transmites é a dádiva natural do Sol durante o dia, das estrelas ao chegar a noite.
- Pepe, tu afinal vês para além da luz! Sinto-te calmo, seguro. Essas tuas botas altas, couro gasto, não serão pesadas, desconfortáveis? Esta casa também ela, como há muito tempo não via, de tábuas pregadas em inclinações de acasos, assimétricas, neste lugar tão isolado, longe de tudo, não será imprópria, despropositada?
- Amigo. é apenas um ponto, uma pequena parcela isolada do universo, a minha gota do grande oceano que ao contrário do teu está por cima. Seremos sempre irmãos porque esse mundo que vês como teu e esse mundo que é o meu, ambos se formaram do mesmo nada, a intriga permanente de dualidades, corpo e espírito, energia e massa. Neste momento, do mesmo modo, habitamos o mesmo céu.

Encontrava-me de costas, mas pude perceber Luena, em passos lentos aproximava-se. Sabia da sua existência, sabia que estava para breve a sua união, admirava-lhe a coragem, com um cego no deserto. Pressenti o esvoaçar leve do vestido que agora ao virar afagava a pele morena acima do joelho, na lentidão contínua dos passos.
O baton era excessivo, na miragem ardente surgiam as curvas de um cartaz de Moulin Rouge, muito longe dali.
Os lábios permaneciam fechados embora dentro de mim, um ruído de vozes de outras mulheres, de outras histórias, uma viagem de sonho, avivando em surpresa memórias esquecidas.
Quando a nós chegou, abriu o sorriso luminoso, estendeu a cada um o fruto da árvore do pecado original, lustroso, brilhante, improvável num cenário feito de silêncios, numa poesia de gestos.
Na primeira dentada, minha, dele, os sucos refrescantes do néctar, em uníssono acariciaram os segredos da alma, saciaram a sede de forma doce, mas não tanto, quanto a voz de Luena num eco cristalino:
- Estas maçãs são uma delícia!