segunda-feira, 8 de novembro de 2010

cartas de um jovem amoroso

Pensei que o nosso breve amor tinha terminado. A sua última recordação seria uma distante chamada telefónica pelo Natal. Acreditei que tinha acontecido algo de muito bom na tua vida, que não necessitasses mais do que nos uniu; ou que, talvez vivesses algo de mau e estavas tão triste que não tinhas vontade de escrever. Não sei. Dei voltas sem fim e coloquei muitas hipóteses mas não cheguei a nenhuma conclusão satisfatória. Melhor, cheguei a uma, e essa talvez já a soubesse antes: que passasse o que passasse, mesmo que o tempo ditasse a sua lei, iria sempre recordar-te como o rapaz do sorriso mágico. O rapaz que só de olhar para mim fazia sentir-me bem, porque olhava de uma terra inteiramente desconhecida, mas que ainda assim era segura, como uma casa que atrai e acolhe com lírios os viajantes cansados.
Apesar que reconheço que mantive sempre a esperança de que um dia, uma carta tua, chegasse de novo às minhas mãos. E dentro das mãos, dentro de mim, nas marcas das palavras, pudesse olhar desenhado o palpitar nas covas do teu rosto, sonhando que precisasses da minha mediação para que o teu sorriso mágico nunca acabasse.

O maestro sacode a batuta



O maestro sacode a batuta,
A lânguida e triste a música rompe ...

Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal
Atirando-lhe com, uma bola que tinha dum lado
O deslizar dum cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo ...

Prossegue a música, e eis na minha infância
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...

Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
Está em todos os lugares e a bola vem a tocar música,
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo...
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)

Atiro-a de encontra à minha infância e ela
Atravessa o teatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarelo e um cão verde
E um cavalo azul que aparece por cima do muro
Do meu quintal... E a música atira com bolas
À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos
De batuta e rotações confusas de cães verdes
E cavalos azuis e jockeys amarelos ...

Todo o teatro é um muro branco de música
Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade
Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...

E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,
Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa
Com orquestras a tocar música,
Para onde há filas de bolas na loja onde a comprei
E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...

E a música cessa como um muro que desaba,
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,
E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto,
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,
E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,
Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...

Fernando Pessoa "Cancioneiro"