quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Trago o Natal no fundo do olhar


Cartier Bresson


Trago o Natal no fundo do olhar
Esse tempo em que a alegria
Era um lugar de crença seguro
E protector e os doces o calor
Da ternura que a casa oferecia.

Trago o Natal no fundo do olhar
Esse tempo a correr pela cidade
[Evocando o amor e a fraternidade
E esquecendo o frio e a dor]
– Agora, desumanidade e elegia.

Trago o Natal no fundo do olhar
Esse tempo que foi simplicidade
E em que eu acreditei num mar
De gestos que eram então realidade.
Hoje, o Natal é apenas utopia –

Promessa à espera da alegria
Aqui tão perto e no Mundo inteiro.
A Fome e a Guerra são no entanto
Ameaça séria e duradoura, um pranto.
Não há ouro que baste aos senhores!

Trago o Natal no fundo do olhar –
Natal, 2010
José Almeida da Silva

a canção de natal


Sebastião Salgado



madrugada
quando alguém bateu à porta
o ponto final no sonho.

duas gotas corriam por sobre a pele, lentas
descendo as têmporas como se sabendo
as razões escondidas.

a preto e branco uma ponte de barcos sobre um rio
dois salgueiros em várias cores de cinzentos
duas figueiras sem figos doces.

outros tempos de há muito tempo
quando os leitos mais pequenos, por volta da volta
das borboletas, molhavam as raízes ainda verdes
das videiras de bagos a crescer, cheios de sede.

era uma tarde morna junto das amoreiras
a melopeia chilreada dos pardais.

brincávamos às prendas
dois laços de ráfia, dois embrulhos de pedras de lousa negra
e depois imaginávamos
aqui te ofereço um anel de ouro
vindo dos desertos mais perigosos da Virgínia.
aqui te entrego um tecido de seda, da china mais profunda;
sete meses de viagem pelas neves brancas, pelos lugares dos pés apertados.

o ceremonial, a humildade ingénua de uma cabeça baixa e um sorriso tisnado
os pés lavados nos pós secos do largo apagando e escrevendo mensagens.

o teu vestido um pouco manchado repleto de amoras
os dedos eram não muito finos, compridos e traziam almofadas
usavas duas tranças de índia que sorriam
eu tinha o cabelo espetado e joelhos riscados
calções de alças
e de vez em quando as mãos
dividiam dez azeitonas e um pouco de pão.

lembrei o sonho e as duas gotas que não sabia como.

no natal seguinte partiste para Helsínquia -

durante o sonho, um rosto sem rosto de cabelos lisos
cantava um jingle bells em sotaque estranho

e trazia o mesmo vestido -

E U T A N Á S I A

Texto poético com base em Poema com o mesmo título:

Após prolongada enfermidade foste herói, e nós fomos sempre teus bons e abnegados amigos. Quisera a tua maléfica sorte que em Dezembro de 2008 tivesses que optar pela vida, e assim espalhando coragem e glória voltaste a ser um animal simpático, em simultâneo cordato e orgulhosamente adaptado à ausência parcial de um membro. Aceitaste e integraste com galhardia o uso do aparelho protésico, como se fosse um verdadeiro prémio pelo teu comportamento.

Ensináste-nos que também no vosso mundo a vida é feita de combate e de exemplos de luta. Mas porque a vil senectude não perdoa, na proximidade dos teus onze anos e meio foste invadido pela cobarde degenerescência artrósica que os músculos te atrofiou, esqueletizando-te as ancas e as coxas, impossibilitando-te a assumpção voluntária da postura quadrúpede de que tanto necessitavas para teus pequenos mas maviosos deleites.

Ela infernizou-te a marcha e então decidiste ter teu fim optando agora por não viver!
Olhavas os nossos olhos suplicando entreajuda em busca da nossa cumplicidade no sentido do teu caminho para um breve mas vital passeio. Não gemias, nem tinhas esgares.

Nós compreendemos o teu silêncio e fomos de encontro ao teu pedido de tranquilidade e derradeiro sossego: demos-te toda a paz que querias ter, e agora vives em nossas mentes sob enormes saudades, meu lindo rotweiller! Teu nome Dundee prevalecerá na penumbra de uma videira ao fundo do pomar, por onde tanto brincaste e fatigado repousavas sem de nós afastar teu olhar quase humano por tão afável e carente.

A vida pertenceu-te e soubeste espalhar "autoridade", mas também uma contagiante dignidade que te acompanhou até tua térrea morada, onde agora tua imagem vive envolta naquela manta branca que nos últimos dias de dôr (para nós) tanto te protegeu e em silêncio acarinhou. Sobre tua campa rasa, quero que saibas, ainda permanece um pequeno vaso florido desde o dia em que te sepultamos...

(António Pinto de Oliveira, Outubro - 2010)
- Livro " Poemas de Vidas " , a publicar em 2010/2011