sábado, 5 de fevereiro de 2011

Bicicletas


Fotografia retirada da internet


(Mais um concorrente o prémio Correntes d'Escrita)

Por muito tempo amarei casas que existam apenas
para guardar uma bicicleta ou os remos de um bote
As casas interessantes não têm pretensão nenhuma
Estão perto de nós na hora necessária
mas a qualquer momento
com mais clareza
afastam-se das certezas que perdemos
e da imensidão que se avista de lá

Um velho provérbio diz:
Se deres um passo atrás, talvez te coloques a tempo
de uma estação clemente

José Tolentino de Mendonça "Viajante sem sono"

os teus olhos de cegonha abrindo o mar


Salvador dali "o barco" 1938

---------------------------"pensar é como andar à chuva"
---------------------------------------------_____-F. Pessoa


não se adivinha a queda das pétalas
nem as corolas despidas de eternidade.
talvez te soe como exagero
mas observa que há momentos sem tempo
relógios indefiníveis e parados, quantuns de luz
só possíveis no sublime estado
de ter o caule elevado, bravio e natural
de ver o invisível e adivinhar a brevidade
com que me acendes os pés nos caminhos do calvário
de barbas brancas, uma bengala e o pacemaker avariado
enquanto espalhas, enquanto espalhas o aroma dos nardos
num alpendre morno, rodeada de árvores altas
enquanto a lua se esconde
embrulhando à pressa as cortinas, repetindo, repetindo
não, não aconteceu, não aconteceu, não foi nada
apenas o deslumbre de uma fase branca, iluminada.

é uma ilusão dizer que me esqueço
que me esqueço de um quotidiano feito de viagens
quando permanece como um rio fluido escorrendo terras
apertando e largando segundos no correr das margens.
não, não nego a contemporaneidade nem a injustiça dos homens-lebre
a dor das crianças adormecidas, as mãos atadas de sonhos
os martírios dos cucos calados, vidas sem surpresas nem asas abertas.
não, não nego os pregos, os martelos, os crucifixos das cidade
as falsas seduções de uma realidade construída de brilhos
brilhos, brilhos, brilhos fugazes.

compreendo às vezes os equívocos das palavras
os seus sonos de real ou irreal, um cinema acordado
construindo uma cena, uma cena por vezes sem sentido
quando nada mudou, nada mudou
dentro da alma.

cala-me. cala-me. agradeço-te. cala-me e não te cales.
não me deixes falar. não me deixes soltar. agradeço-te.

depois de escrever estes versos bato a porta
viro a chave que fecha a casa, abro a cidade
percorro o gelo e os passeios quadrados
fujo das linhas rectas, dos olhos fechados
e canso-me de pensar, canso-me de pensar
no café, no metro, no supermercado
percorro as ondulações do meu jeito e peço-lhe que se acalme
que se acalme

e apesar de um tempo seco e de um frio impermeável
sinto a chuva que me invade
e penso, penso, penso
na proximidade mais longínqua que te afasta
e nos teus olhos de cegonha
abrindo o mar -

José Ferreira 5Fev2011

A arca (supostamente) de Noé



O mundo está a mudar, e muito depressa. Na ausência de eficácia e convergência nos protestos provenientes da espécie dita esclarecida, os animais têm vindo a utilizar aquilo que têm mais à mão (passo o animismo imperfeito), para sacudirem a ordem do dia e o establishment de um mundo que ainda chora de noite quando acorda, está tudo escuro e não vê nem a mãe, nem o pai por perto.
Alguns historiadores, zoólogos e defensores de um Criacionismo de pendor sueco e obsceno acreditam que os animais se reuniram muitas vezes em surdina enquanto o homem vigiava a sua frincha de inocência, tomada tantas vezes pelo gigante da incoerência nítida.
Muitos acreditam ainda que os animais estabeleceriam planos que combateriam a estratégia paraplégica de uma espécie que reinava com a convicção de que era sublime (e apenas sublime!), e de que, por isso (ou nem por isso), lhe era conveniente existir acima e ligeiramente abaixo de todos os séculos, expectativas e erros, conforme a disposição daquele dia.
Pouco tempo depois, os animais – ainda segundo fontes do Novo Criacionismo – assinaram um tratado que mencionaria estar para breve o fim dos tempos de um certo tipo de sabedoria. Colocaram entre aspas “sabedoria” e “certo tipo”, mas não “o fim dos tempos”. Propuseram novos slogans, verdades, diálogos, mentiras e escatologias débeis. Deseducaram-se como uma pétala que foge à flor, por uma questão de milímetros. E tornaram-se reis, depois de violarem a única mulher a bordo e assarem na brasa a bondade de Noé, que, dizia-se, tinha um lombo impecável, se o molho se fizesse de véspera e a as batatas reluzissem.