segunda-feira, 7 de março de 2011

Desculpo-me dos outros com o sono da minha filha



Desculpo-me dos outros com o sono da minha filha.
E deito-me a seu lado,
a cabeça em partilha de almofada.

Os sons dos outros lá fora em sinfonia
são violinos agudos bem tocados.
Eu é que me desfaço dos sons deles
e me trabalho noutros sons.

Bartók em relação ao resto.

A minha filha adormecida.
Subitamente sonho-a não em desencontro como eu
das coisas e dos sons, orgulhoso
e dorido Bartók.

Mas nunca como eles
bem tocada
por violinos certos.

Ana Luísa Amaral

as lentas nuvens fazem sono


David Hockney

As lentas nuvens fazem sono,
O céu azul faz bom dormir.
Bóio, num íntimo abandono,
À tona de me não sentir.

E é suave, como um correr de água,
O sentir que não sou alguém.
Não sou capaz de gozo ou mágoa.
Minha alma é aquilo que não tem.

Que bom, à margem do ribeiro
Saber que é ele que vai indo…
E eu? Vou indo dianteiro
No som inútil e infindo.

Fernando Pessoa 25.12.1931

Fragmentos I


Guy Bourdin


Esta noite regressei só ao hotel; o outro decidiu regressar mais tarde, já noite dentro.Aí estão as angústias, como o veneno preparado (o ciúme, o abandono, a inquietação); apenas aguardam o tempo suficiente para se declararem. Vou buscar um livro e um soporífero, «calmamente». O silêncio deste grande hotel é sonoro, indiferente, idiota (ronrom distante das banheiras que se esvaziam); os móveis, os candeeiros, são estúpidos; nada de amigável onde nos possamos aquecer («Tenho frio, regressemos a Paris»).

Roland Barthes "Fragmentos de um discurso amoroso" Ed. 70 1981

Poetria