sexta-feira, 11 de março de 2011

A carta de Paris


josé ferreira

neste café de Paris escrevo-te o ainda princípio
perdida nos signos de uma nova língua
ao som de Tiersen. um acordeão. uma camisa.
na vista do boulevard a transparência intermitente
de desconhecidos passos e ruídos. o burburinho.
na ópera anunciam Aída e penso ainda em Antígona.

“- madame? - café au lait s’il vous plaît et un croque monsieur.”

escrevo-te nas folhas picotadas do bloco preto
o acordeão toca. a música plana.
dispo o casaco. separo da casa o primeiro botão da camisa.
entra um ar frio. arrefeço.
em Orly perdi as nuvens habitadas de um espaço imenso
onde sempre me imagino sentada numa asa
segurando a saia de cabelos ao vento
os pés descalços e frescos.
loucura. loucura consciente.
abstracção inefável. a leveza insustentável.
escrevo-te e descrevo-te os primeiros lugares da ausência
o silêncio que lamento. escrevo-te enquanto espero
os vapores e aromas de uma chávena quente.
escrevo-te.
fecho os olhos e parece que te vejo.
acenando. uma das malas pequenas. um barco.
acostando. junto à ponte de Neptuno. do tridente.
nas escadas sorridentes do cais. na margem do Sena.
lamento. lamento a ausência. os seis meses de distância.
escrevo-te. escrevo-te no momento antecedente
de rodar em círculos na espuma fumegante
a valsa doce em dissolução.
aqueço. a música. o acordeão. Tiersen.
o primeiro botão da camisa -

Amélie -

sementes que nascem em terra queimada I

anteontem.
inquietude tão imprudente
rasga-me.
apetece demais bulir
agarro-me.

ontem.
da paralisia
não resvalou repouso
antes fosse sono.
Leva a luz todas as cores
e o sono todos os dias.

Traz o sono
a qualquer lugar.
Onde não sei como
se adivinha.

Exilada

Hoje, noutros agasalhos
não traz quase nada, o frio.
à espera do despontar
da flor de urge, a borboleta.

aqui longe a imaginar
pode o vento que junta
separar as nuvens

ninguém nota, inversão
e receio, até quando deixa
escorrer de mel, se e se
não chega mais flor.

vê, o escorrer das gotas
no vidro, só ainda não choveu.
nas ruínas da ponte
já não importa se é raro!

[a geada]

Deixamos os segredos atados aos
ramos das árvores
quando a geada desce
sobre as vinhas
e os telhados das casas
para que possa recrudescer
por um instante
o imenso poder da rasura
e do silêncio
nas páginas impressas
de todos os livros.

José Carlos Barros

A carta de Amélie


josé ferreira

a irrealidade quotidiana adormeceu os sentidos.
nas pontas dos dedos os restos da notícia.
partiste.
escureceu o dia na caligrafia azul das palavras.
a assinatura única. a última carta.
silêncio.
o sono profundo do sonho.

a irrealidade quotidiana adormeceu os sentidos.
um campo de papoilas vermelhas
não é costume na cidade.
não há glícinias.
as magnólias exibem a inexistência de folhas.
o jardim permanece inerte no sossego dos gatos.
a carta. a carta um fogo aceso de palavras.
mas não existes. não és realidade.

a irrealidade quotidiana adormeceu os sentidos.
os olhos são quadrados. um quadro de Picasso.
as cores oscilam num caleidoscópio azul lilás.
imagens tremidas nas pontas agudas dos ângulos.
partiste.
relâmpagos de tontura.
seis meses de distância Amélie.
o perfume das letras e o quadro de Monet
são um refúgio frágil do desejo.

conto os dias -

José Ferreira 10 Março 2011

dor

dói-me o sono.
dói-me o estar acordada.

custam-me as palavras
transparentes
em desalinhos de nada.

custa-me a página vazia
densa e opaca
na vigília da madrugada.

raquel patriarca | dois.fevereiro.doismileonze