sexta-feira, 18 de março de 2011

I e II e III


Paul Klee 1939


I.
Na cidade não se falava de amor
mas eu amava
e resistia à cidade
porque falava de amor.


II.
Uns viviam em ruas com nome
de escultor,
outros viviam em ruas com nome
de pintor,
muito poucos viviam em ruas com nome
de gente.


III.
Na cidade tudo era circular:
terminava no mesmo ponto
em que começava.
Redondos, inúteis,
sobrevivíamos
como as montanhas lá ao fundo.

Filipa Leal "A cidade líquida e outras texturas"

uma poetisa de quem gosto...

Era ontem quando o rodado das bicicletas passeava na estrada solarenga e levava os nossos risos transformados em eco de gargalhadas aos vales da nossa infância. Fazíamos grinaldas com o branco dos carrapiteiros que nos aguardavam na caminhada. Pareciam sorrir por entre a brancura florida e pactuavam connosco nas descobertas. Tínhamos o mundo nas mãos. Adormecíamos no tapete dos sonhos e inventávamos a felicidade.


Dalila Moura

poesia e outras surrealidades úteis

o dia em que atingiu a maturidade não tinha nenhum significado especial. era quinta feira e o sol tentava desarrepelar-se das nuvens. a meio caminho de atravessar a estrada, sem os vestígios da epifania ou apoteose que se esperam num momento de absoluta clarividência, descobriu uma verdade fundadora. quando pisou o passeio do outro lado, estava em paz. aceitara sem reserva a natureza desajustada de si próprio e a incapacidade molecular para compreender a aritmética das coisas da vida. aceitara a incoerência como condição essencial de existência e o absurdo de depender a felicidade nos sorrisos alheios, na poesia e noutras surrealidades úteis.
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raquel patriarca | dezassete.março.doismileonze

talvez




a tulipa esguia e alta. caule e pétalas.
no lado esquerdo. repara. alta.
e o silente batente de um metrónomo. repara.
travo o fumo do cigarro.
uma digestão de palavras. um diálogo íntimo
de olhos abertos e olhos fechados
onde há realidades
e onde os sonhos se surpassam
como cenas de um teatro de gaivotas
em recorte curvilíneo de asas
onde
areias finas
uma enseada -

penso na porta aberta de um espelho
quando anoitece
quando a lua solta as cordas da cítara
e canta. alta.penso -

talvez solte o fumo.
talvez pouse os braços.
talvez apague o cigarro.
talvez vista o casaco.
talvez saia no volume negro da cidade
pelas ruas largas, pelas ruas gastas.
talvez saia talvez saia
de rosto aberto e botões apertados.
talvez saia talvez saia
ensaiando a face
ensaiando as palavras
na esperança branca de um segredo
e na presença dos teus olhos -

José Ferreira 18 de Março 2011