quarta-feira, 15 de junho de 2011

- Que as andorinhas não choram

I
É uma porta de ferro
Alta, larga, densa – Não se lhe conhece o fim.
O bando já foi
As andorinhas nasceram para rasgar o céu
Voou, mais uma vez, de uma investida,
Conforme lhe ditava o coração
A porta não se abriu.
Como num bailado, duas piruetas
Uma andorinha no chão, duas asas partidas
- Éeee – Um eco – Dois miúdos jogavam à bola
- Iuiui – Passou o amolador das facas
- Pic pic pic – As primeiras gotas batem no vidro
Entra o cheiro da terra molhada
E começou a chover
- Que as andorinhas não choram.
Primavera Verão Outono Inverno

II
- Então não estamos aqui? – Perguntou ele.
- O corpo sim – Disse ela nua – Mas, tu não abriste a porta. E eu estou morta.
No palco também chovia
Sobre o olhar atento de Pina
E a rapariga de branco
Dançava como andorinha e gritava
- Eu sou jovem!
Primavera Verão Outono Inverno

Cansei-me desta chuva miudinha



















"Golconde", René Magritte, 1898-1967
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Cansei-me desta chuva miudinha,
Teimosa e poalha venenosa –
Molha sempre a minha poesia
E enruga a folha lisa onde mora.
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Fechei a janela e a gelosia,
Mesmo assim aquela miudinha
Entra-me em casa sem pedir
Licença, curiosa e atrevida.
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Pousa-se logo ali na mesa
De trabalho e olha a tinta
Como uma rival – as palavras
Entende-as como quer e pode.
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Afinal, tanto lhe faz se estão
Deitadas ou se estão de pé,
O que ela quer é encharcá-las
Todas. Sim, mesmo até à alma
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E fá-lo sempre com a calma
De um crítico de literatura.
A criatura lê tudo a direito
Sem respeito por quem
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A pensou e escreveu. Enfim,
Presunção e água benta,
Tem-na ela à flor dos olhos:
Lê e insensível diz – não presta.
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E esgueira-se de aresta em aresta
Feliz e rindo da patifaria. Eu fico,
Já se vê, como o sol no deserto
Capaz de a matar de insolação.
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Mas sem demora guardei a poesia
Enrugada na gaveta, e fui para a janela
Exorcizar a chuva para que fosse embora.
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E mesmo tímido, o sol iluminou-lhe o caminho –
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2011-06-06
José Almeida da Silva
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Reflexão à chuva

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Foi de chuva intensa esta manhã, eu sei,
E a noite de caudalosas lágrimas.
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Não sei que te diga. Tu sabes, a chuva
Aborrece e depura, apesar da lama a correr
Pelas ruas [é verdade, as sarjetas entopem,
Não são limpas – o verão distrai quem é já
Propenso à distracção e à monotonia]
Enlameando os degraus das casas e as caves.
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Às vezes, nutre a chuva, sobretudo
Se surpreende as pessoas que a não
Esperavam, distraídas, e que correm
Às lojas chinesas que pululam na
Cidade como os cogumelos nas terras
Húmidas e quentes, e compram baratos
Guarda-chuvas de qualidade duvidosa.
A lama é também aluvião, fertiliza a terra.
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Queixas-te muito de que a chuva incomoda.
E as lágrimas desassossegam-me ainda mais,
Brotam do magoado coração como a elegia,
Um coração que pensa somente em remoinho,
Sempre a mesma ideia, sempre a mesma força
Centrípeta confundindo a lucidez do espírito.
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Melhor teria sido ir para a rua festejar
Como as crianças chapinando nas poças
E molhando os sapatos e as meias, rindo –
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[Vejo-me no espelho de uma poça a brincar,
Sapatos encharcados até aos pés, e as calças
Molhadas nas bainhas, tudo uma emoção,
E felicidade por esses momentos de alegria.
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Sei bem o que custa assim a liberdade,
A minha mãe vem lá de mãos atrás das costas –
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E tu sorriste ao sol do meu sorriso –
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2011-06-04
José Almeida da Silva
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Toquei de leve a chuva

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Toquei de leve a chuva
Caída no teu rosto
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Somente à transparência
O teu olhar de luz
Era frágil inocência
.
Abandonada a beleza
É ainda mais bela
E iluminada
.
Repousa a chuva
Na manhã de rosas
E tu resplandeces
.
Afrodite não estaria
Mais sublime –
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2011-06-08
José Almeida da Silva
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Borges e a chuva


Renée Magritte


La lluvia



Bruscamente la tarde se ha aclarado
porque ya cae la lluvia minuciosa.
Cae o cayó. La lluvia es una cosa
que sin duda sucede en el pasado.

Quien la oye caer ha recobrado
el tiempo en que la suerte venturosa
le reveló una flor llamada rosa
y el curioso color del colorado.

Esta lluvia que ciega los cristales
alegrará en perdidos arrabales
las negras uvas de una parra en cierto

patio que ya no existe. La mojada
tarde me trae la voz, la voz deseada,
de mi padre que vuelve y que no ha muerto.

Jorge Luís Borges



A Chuva

Bruscamente a tarde se há desanuviado
Porque já cai uma chuva minuciosa
Cai ou caiu. A chuva é uma coisa
Que, sem dúvida, sucede no passado.

Quem a ouve cair há recobrado
O tempo em que a sorte venturosa
Lhe revelou uma flor de nome rosa
De tão peculiar avermelhado.

Esta chuva que escurece os vidros
Há de alegrar os subúrbios perdidos
As uvas pretas de uma parra em certo

Pátio que já não existe. A molhada
Tarde me traz a voz, a voz desejada,
De meu pai que volta e que não morreu.


lido aqui