quinta-feira, 31 de maio de 2012

Portugal_idade


Engarrafado na oliveira,
à mais de 100 anos,
o Gallo canta
Azeite!
Resolve à batatada
qualquer jantar

Ai que saudades da caldeirada!

e depois é manhã



                              Lillian Bassman "Carmen having tea" 1950



e depois é manhã, uma manhã resplandecente
depois da madrugada com as palavras debaixo do corpo
ainda morno e é primavera –

os teus olhos abrem-se na dificuldade dos braços espalhados
a perna esquerda levantada, a direita esticada, a tocar as dobras
uma profundidade –

e os meus da mesma forma –

e  é manhã, a manhã depois do sonho das fadas
das estrelas brilhantes, da lua branca, das tuas palavras
sem durezas, macias como uma espuma a tocar areias
e o mar afaga, e é longo –

guardo-te todos os diamantes, os que são líquidos, os sossegos mais claros
aqueles que compõem a alma, que lhe secam as lágrimas
aqueles que têm mãos e abraçam as omoplatas
as suas partes mais ósseas, para que sejam mais brandas
menos pesadas –

e depois é manhã, uma manhã de dedos e margens
que acenam e constroem pontes –

as nuvens são uma promessa
de trazerem alguma sombra e de darem um pouco de azul sem que outros vejam
um azul que estilhaça as cavernas, os fantasmas mais perversos
os limites do tempo na época dos frutos –

 e depois é manhã, a manhã resplandecente, sempre
até que um sinal de fumo anuncie a noite
o seu veludo, a rotação dos astros influentes
e resistentes
e eternamente iluminados –

e depois é manhã dentro do meu peito
no compasso imperfeito do sono, o círculo sem medo
que acorda o mármore dos templos e a deusa no seu manto

e as estrelas
e as estrelas –


 josé ferreira 31 maio 2012

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Amanhecer na luz

Há na cor invisível da pura luz a forma
O quente laço do olhar a embalar angústias

Os medos são monstros transparentes
Capas de ilusão maciça sem dono

(sinto os ossos mais fortes quando ris)

A matéria osteoblástica da tua força
Um mistério da metafísica

Cresço num gigante de sorrisos
(um abraço forte, forte)

Os monstros transparentes fogem, fogem
São tão pequenos à visível luz
O amor é a antiforma

( a matéria é uma ilusão arcaica)

O amor
Embala os barcos coloridos na nossa praia

(A luz cresce, cresce)

A verdade sobre os guarda-chuvas














A verdade sobre os guarda-chuvas

A chuva voltou de entre nuvens de fogo – amanhã
Vai estar calor, o céu tem nuvens róseas, o negro
Que as circunda é quadro para as mostrar aos olhares
Nuas – uma beleza inesperada na tempestade oculta
Por dentro das nuvens – tanta chuva por chover recolhida
Na abóbada que devia ainda ser azul celeste pouco antes
Do crepúsculo. A chuva há de chegar com bagas grossas,
Ou miudinhas, forte e fustigada pelo vento norte enregelado
De frio como vagas encrespadas de um súbito mar enfurecido –

E eu estou à janela esperando contemplar o espetáculo tão belo
E singular que as nuvens sempre oferecem no final do ciclo da água
– Não acho piada nenhuma aos guarda-chuvas de todos os tamanhos
E cores. Os guarda-chuvas impedem que a Natureza se mostre no seu
Esplendor e que a chuva lave as impurezas que as cidades depositam
Nos homens – A sujidade assim agarra-se à pele e instala-se no coração
E até na alma – Um incómodo para a chuva miudinha que tem de fazer
Muito mais esforço. Não sei bem para que servem os guarda-chuvas.
Não guardam nada e não deixam que a chuva se cumpra na sua função.

Estava eu debruçado na janela quando a chuva começou a cair a rodos.
Fechei a janela e saí para a rua – precisava de me lavar, e não me manter
Ali abrigado como se abrisse um guarda-chuva e deixasse as impurezas
Agarrarem-se a mim como lapas nos rochedos ou bolores nas paredes.

Todo molhado, da cabeça aos pés, sentia-me lavado e leve, e comecei a
Chamar por toda a gente como se estivesse a suplicar aos céus a bênção
Da água quando as secas se abatem sobre as florestas como furiosos fogos
Devastadores de mãos sujas. As pessoas vieram mas trouxeram os usuais
Guarda-chuvas e as botas de borracha. E eu fiquei sozinho no meio delas.
Parou de chover, e eu ri muito da inutilidade dos guarda-chuvas. Como o azeite,

Toda a verdade ilumina o poema, lucerna de sons, de ideias e versos acesos –
                                                                                                                           (2012.03.06)
                                                                                                                                      José Almeida da Silva

segunda-feira, 28 de maio de 2012

O Teu Amor



Amor escrito a densidade
Ziguezague em pura luz
Envolve de ouro a saudade
Impregna de estrelas a pele
Transformando em liberdade
Etéreos sonhos de papel.

Amor corpo inteiro em céu
Zela a noite em nu abraço
Espaço de poente a par
Ilumina gigante a fantasia
Teu amor é terra e laço
Escreve em meu colo poesia.

A história de como o Azeite

.

..
Dom Azeite Azeitoninho de Monte-Plano Lampante
          [ Reguengos de Oliveira Carocilho e Alarcão
Era um senhor rubicundo
e profundamente careca
que vivia numa ramada seca
em Azeitão.
.
Falava imenso,
sempre muito alto –
com a sua cara de pele lustrosa
virada para cima a brilhar –
na toada discursiva
de quem sabe tudo,
peito inchado,
sobrolho franzido e
braços a gesticular.
.
Gabava-se de ser Rei
das Hortas, das Oliveiras e da Criação,
Senhor dos Lagares do Azeite,
rico que nem sabia quanto!
Navegador d’ aquém e d’ além
do Regato Pingado da Rega
Imperador das varetas,
e isto e aquilo e mais que Santo.

Tinha só uma folha pelada
que chamasse sua,
o resto era basófia e
refinadíssimas balelas,
está mesmo bom de ver!
Por dentro
tinha um caroço
preto e duro como os outros,
e sangrava a mesma matéria,
densa e viscosa ao arrefecer.
.
E lá andava muito empinado,
a rebolar por todo o lado,
a arengar à esquerda e à direita
com voz cava de cavalheiro.
Mas houve um dia
em que perdeu a compostura,
estalou-se-lhe o verniz da casca
e mostrou a polpa de arruaceiro:
.
Alguém o chamou
sem as untuosidades de que ele gostava:
- Anda cá, ó Azeitona!
E ele parou de repente
engasgou-se-lhe o caroço,
passou-lhe uma coisa pela vista,
foi direito ao outro e zás!
Acertou-lhe uma tapona.
.
E estavam todos tão cansados
das retóricas e tiques de
Dom Azeite Azeitoninho de Monte-Plano Lampante
          [ Reguengos de Oliveira Carocilho e Alarcão
que foi um deleite:
É que o outro
era maior e não se ficou,
apanhou-o pela largueza da baga,
e apertou
e triturou
e torceu
e espremeu
e sacudiu
até que nada sobrou,
senão uma pocinha de azeite.
.
raquel patriarca | vinteecinco.maio.doismiledoze

domingo, 27 de maio de 2012



de entrada a uma casa pequena ao sol
o estreito movimento de olhos  
o virar da face como remo 
uma casa que é barco por dentro
e arrefece na suspensão de uma festa no cabelo 
sem prestar atenção ao que se acende e se apaga em cada ilha 
ao movimento dos barcos 
quando se despedem dos olhos  
a caminho do espaço comum 
aberto devagar entre as sobrancelhas dos bichos
milímetros paralelos de luz
e cada um para o outro, uma criança -
tem que se falar de luz no sublime cruzar dos olhos dos bichos
não através dos olhos dos mortos nem do alimento do espectro dos livros
sigo com os barcos que fazem desaparecer multidões 
a acenar por dentro dos olhos 
ouve-se um rumor lúcido de um motor suave 
mais ou menos o que há de bom no sol
talvez esteja a chegar
o calor é actualizado a cada instante 
e já não é o calor do sol 
de luz, de avisos
oh meu capitão 
há barcos que vão e vêm vazios


um trompete dança-me agora a medo
sopros abertos por dentro
erguem-me os braços e bailam para longe
é exacta a saudade entre os meus braços 
e as pernas calçadas de margens sem mim
gosto de paisagens
mas entre as minhas pernas e o horizonte
sempre houve danças que não entendo
prefiro a superfície da música 
sem direcção, um gesto em vez de um passo,
o movimento das pernas não pode escrever-te num quarto escuro, 
só mãos a abrir um corpo 
sem pernas o amor é de braços longos capazes de calar a linguagem das árvores
quando já só existe um vento fino ao piano,
os braços não caem 
e um movimento de alegria tem que ondular pelo corpo acima
seguro, quando rodas
os teus braços levantam um pólen tão ordenado como o das abelhas
que recolho nos meus 
e se os vires desvanecer em direcção pouco certa
nesse instante diz-me adeus, como se só as pernas me tivessem partido,
tem cuidado meu amor com a inveja que as palavras têm dos braços
um gesto ouve-se menos que um passo
e o nosso abraço roda sem atrito
vês, como se ergue ligeiramente  
e vai dispersando a terra que lhe cai em cima
os teus braços não são teus 
são duas rezas minhas 

sábado, 26 de maio de 2012

Angelus Markus



ANGELUS MARKUS


Não sei se pela brutalidade da cidade já te cruzaste com Angelus Markus, de pernas grossas, de botas de aço. As biqueiras brilham quando caem os raios mais amarelos e cegam com frequência mulheres e homens de todas as idades.
Angelus Markus tem uma deficiência desapercebida dos mortais, a cabeça não pensa fora de casa. Não sei se te cruzaste com ele num crepúsculo ocasional com os olhos em brasa, de passo após  passo, mecânico e sempre na mesma distância, como um cronómetro poderia facilmente concluir, anotando precisamente que  o espaço  é proporcional ao tempo, seguindo cientificamente a lei de uma física uniforme, uma espécie de cyborg.
Nunca poderias encontrá-lo de t-shirt branca, ou às listas, mesmo que de farmácia ou supermercado, anda sempre com uma gabardine larga que se abre sem vento  e causa o pânico, o arrepio e a náusea, a pressa  de todos os que usam células, de ganharem  asas e atravessarem todos os sinais de sangue nos semáforos vermelhos, no imediato, para outro lado. Por vezes as crianças correm e provocam acidentes como se fugissem de uma discoteca incendiada, deixam os lollipops, os chocolates, cadernos e mesmo os lápis  e fogem com os cabelos levantados, por uma electricidade estática sem memória  e imperdoável .
Angelus Markus nunca vê ninguém, tem neurónios de água fora de casa, não pensa, só ouve ruídos, o marulhar de um mar de tempestades e nunca plano ou de azeite, como os gregos inventaram.
Angelus Markus escuta  as tábuas de naus partidas,  os mastros com dentes, inclinados,  e as velas de trapos, rasgadas como folhas de papel couché ou páginas de jornais genéricos de notícias vulgares, absolutamente fundamentais  na ignição das lareiras provisórias quando há um inferno nas chamas dos ecrãs das televisões regionais, nacionais e globais.
Se  construísses um círculo preciso com ferramentas de Da Vinci, com um compasso gigante, daqueles de sépia ou grafite, à roda do homem, daqueles que ficam para a posteridade, não poderias envolver nunca nessa íris  Angelus Markus. Nunca poderias violar aquele halo, aquele aura magnética de pólos sempre preparados para a projecção e nunca a atractividade. Possui um interruptor automático, mais com mais, negativo com negativo e um curto circuito de ruptura afiada com a dureza dos diamantes, a mais alta das escalas.
 Nunca poderias ver Angelus Markus a descer escadas, desequilibraria a engrenagem e o coração metálico. Os poucos que conseguiram chegar perto do seu perímetro mínimo de dois metros dizem que ouviram um pêndulo e lembram-se de Foucault, é possível que nunca pare.
Angelus Markus provavelmente nunca vai ser desvendado e há-de continuar a sair às cinco horas e trinta e quatro, da casa 25,  de um bairro de cinquenta casas sem nenhum habitante, para além de Angelus. Na entrada, tem um antigo marco de correio, dos que têm um ponteiro e horas paradas. Não consta que alguma vez tenha ali entrado alguma carta, e o último carteiro de que há memória vive numa montanha dos Alpes com uma doença estranha, e não fala.
As saídas ordinárias, pendulares e síncronas, diárias, de Angelus Markus demoram exactamente  43 minutos e sempre que se aproxima da porta do bairro, ela abre e range num grito audível a dois quilómetros de distância como um camião Tir em travagem antes de parar ou chocar, condicionado pelo raio de uma circunferência  com um centro na sua sala junto  da floreira de cristal d’Arques, que tem sempre a mesma rosa vermelha, sem água e absolutamente natural. As pétalas nunca caem.
Não sei se já foste projectado a mais de dois metros de distância por Angelus Markus, se alguma vez o encontraste mesmo que ao longe como os pássaros e poderia continuar a falar-te dele por toda uma eternidade, mas ele chegou mesmo agora  com as portas chiando nas rotações severas e ruidosas,  e  com um óleo dos silêncios. Já não interessa, porque quando entra em casa e se senta no sofá de pele coçada de carneiro, retira os olhos e põe-nos em cima da mesa, desloca o joelho, abre um fecho de mola e usa a tíbia e o perónio como bengala, e estende a mão para a rosa vermelha que fica hirta depois de estar 43 minutos inclinada.
Angelus Markus não usa facas nem diz mal de ninguém, ele nunca fala, não bebe nem cozinha massa, mas dentro de casa, apesar de sobrenatural,  pensa  e tem alma, ao contrário dos quarenta e três minutos frios e metálicos como um robot pela cidade.
 A curiosidade deste personagem, Angelus Markus, não é o estar dentro de casa e poder comover-se com as rosas vegetais ou com uma paisagem caliente da Toscânia num velho calendário de 1934, que não vê mas agora pensa, e sabe do seu lugar na prateleira setenta  e cinco há direita  de quem entra, pelo lado mais claro do subconsciente, um local muito húmido que ainda liberta adrenalinas. Memórias provavelmente muito antigas ou roubadas a alguém que foi projectado ontem ou hoje contra um a parede,  memórias que faz dele e que outros  têm .  Mas essas memórias não atraem ninguém, nem sequer as crianças de cabelos eriçados. A sua figura esvoaçante de gabardine e olhos de chama interessam a toda a gente, é um desafio de um acto social, é importante. Por isso é bom que o encontres num lugar público com os seus olhos falsos de brasas, ao longo da larga circunferência das calçadas,  junto  ao bairro deserto, para que sintas a emoção de um murro acre nas paredes do estômago  e  nos teus valores fundamentais, e isso é reportável, e isso é muito interessante  e isso é uma nódoa apreciável.
 Se no entretanto não o encontrares nunca, não estranhes nem deixes de tomar o café no local habitual, não deixes de comprar o plástico das headlines e não deixes de sorrir aos dentes brancos de todas as Stars. Quanto às outras, aquelas que pousam no ar na noite mais aveludada, quanto às outras quando ficarem menos cintilantes, quando numa noite sem memórias, uma noite cáustica, quando todas as estrelas por alguns momentos ficarem menos brancas e mais baças, quase apagadas,  saberás que Angelus Markus morreu e não foi enterrado. Só daí a duas semanas, meses ou anos se saberá.
Ou pelo contrário sem a falta de um azeite celular e com o clássico óleo de lubrificar, será imortal, e permanecerá para sempre num qualquer bairro desconhecido e no qual não mereces morar, porque há quem diga que o pêndulo inicia o movimento e sem atrito, não parará.

José Ferreira

P.S. Este texto e outros poemas que aqui vão aparecer nos próximos dias resultam de mais um encontro dos fazedores deste blog, com Ana Luísa Amaral, subordinado ao tema "azeite", e com um desafio suplementar de cada um tentar sair do seu próprio estilo e tentar surpreender os outros. Este texto foi a minha proposta

sexta-feira, 25 de maio de 2012




Mostrai-me de uma pátria à outra
o infinito fio da vida
cosendo o fato da primavera.
Mostrai-me uma máquina pura,
azul de aço sobre o grosso azeite,
pronta para avançar nos trigais.
Mostrai-me o rosto cheio de raízes
de Leonardo, porque esse rosto
é a vossa geografia,
e no alto dos montes,
tantas vezes descritos e pintados,
as vossas bandeiras juntas
recebendo
o vento electrizado.
Do volga fecundo trazei água
à água do Arno dourado.
Trazei sementas brancas
da ressurreição da Polónia,
e das vossas vinhas levai
o doce fogo vermelho
ao Norte nevado!
Eu, americano, filho
das mais vastas solidões humanas,
vim conhecer a vossa vida
e não a morte, e não a morte!
Não atravessei o oceano,
nem as mortais cordilheiras,
nem a pestilência das prisões paraguaias,
para vir ver
ao pé dos mirtos que só conhecia
nos livros amados,
as vossas órbitas sem olhos e o vosso sangue seco
nos caminhos.
Ao mel antigo e ao novo
esplendor da vida é que vim.
à vossa paz e às vossas portas,
às vossa lâmpadas acesas,
às vossas bodas é que vim.
às vossas bibliotecas solenes
de tão longe vim.
Às vossas fábricas deslumbrantes
venho trabalhar um momento
e comer com os operários.
Nas vossas casas entro e saio.
Em Veneza, na bela Hungria,
em Copenhaga me vereis,
em Leninegrado, conversando
com o jovem Puchkine, em Praga
com Fucik, com todos os mortos
e todos os vivos, com todos
os metais verdes do Norte
e os cravos de Salerno.
Sou a testemunha que vem
visitar a vossa morada.
Oferecei-me a paz e o vinho.

Amanhã cedo partirei.

Espera-me em toda a parte
a primavera.

Pablo Neruda " As uvas e o vento" Campo de Letras (Trad. Albano Martins)

quinta-feira, 24 de maio de 2012

The Fifth Wheel




THE FIFTH WHEEL




CHAPTER I

RUTH VARS COMES OUT


I spend my afternoons walking alone in the country. It is sweet and
clean out-of-doors, and I need purifying. My wanderings disturb Lucy.
She is always on the lookout for me, in the hall or living-room or on
the porch, especially if I do not come back until after dark.
(...)
I have discovered a pretty bit of woods a mile west of Lucy's house, and
an unexpected rustic seat built among a company of murmurous young pines
beside a lake. Opposite the seat is an ecstatic little maple tree, at
this season of the year flaunting all the pinks and reds and yellows of
a fiery opal. There, sheltered by the pines, undisturbed except by a
scurrying chipmunk or two or an inquisitive, gray-tailed squirrel, I sit
and write.


(...)
Olive Higgins Prouty (1882-1974)

terça-feira, 22 de maio de 2012

era o dia do boulevard




era o dia do boulevard
Paris emergia nos seus telhados de lousa lisa.
as janelas de sótão abriam-se e era maio
o mês das flores.

aquele momento foi a porta aberta e o lampião aceso
cedo, cedo, depois da madrugada que juntou a noite
cedo e tarde, ouro nos olhos e a palha espetada como agulhas
depois das costas tortas de outras escritas, o relatório –

preferia falar das vindimas, dos cachos maduros
da gravilha clara e pequenina para que não haja pó nos caminhos
mas o relatório ergueu  os números, a hora da conta
e não do conto, e não da maresia –


penso nos teus cabelos e nas minhas paredes
penso que não devia ser assim esta distância e saí cedo
cedo na esperança de que o sol fosse amigo –

 os dias seguintes da primavera, quando se aproxima o estio
são maiores, mais brancos, menos vazios –


essa a razão, saí cedo mas a barba tinha uma sombra
um piano baixo de alguns graves quando a mão a percorria.
ninguém, nem ninguém havia quando a barba erguia  o som
um som de intensidades únicas, o cansaço da noite inteira, o relatório
e a outra margem,  uma memória contínua –

passei por essa rua.  não esperava o vestido preto a sombrinha.
 os dois sozinhos
a porta aberta, o lampião aceso, a rua vazia –

não sei se soubeste se era aquele rosto, naquela hora
porque o pé tremia; a hesitação, a dúvida
o apoio da sombrinha, o recuo, a rua vazia –

 no minuto seguinte
um passo atrás na luz para o mistério dos olhos perdidos
para o mistério das cartas e dos segredos
um passo atrás, um crescer sozinho
como um rio contrariado pelo grande muro humano
por uma barragem no meio de paisagens
por ser cedo e porque a porta estava aberta
e porque provavelmente nada se explica –

cedo, digo, porque mais tarde dois minutos podia ser diferente
se, frente a frente, a porta aberta, a rua vazia –

 Paris podia ter acontecido
não fosse o atraso e a paragem
aquele lampião impossível –



                                                                                       
 josé ferreira

sábado, 19 de maio de 2012

Maio 2012




"Aqueles que não se lembram do passado estão condenados a repeti-lo".
George Santayana

"A memória guardará o que valer a pena. A memória sabe de mim mais que eu; e ela não perde o que merece ser salvo."
Eduardo Galeano

"Somos responsáveis, porque matamos noutros o que os outros matam em nós mesmos".
Jorge de Sena, "Elegia por certo", in Visão Perpétua

Por além mares,
na terra como num barco,
o extremo do extremo,
sobreviveu quem veio, e
quem ficou da outra maneira.

Por toda a vida a viver,
não vós esqueço.

Anabela Couto Brasinha

Muito acima das nuvens seja o centro




                                                                                                                                                                                                                                                                        
Muito acima das nuvens seja o centro
das nossas misteriosas poéticas
o irresistível anseio de viajar
um só movimento trabalhado à mão
nos ermos mais altos
mais desaparecidos

 

Mário Cesariny de Vasconcelos In Pena Capital  

sexta-feira, 18 de maio de 2012

a carta que te escrevo ( XXI )


                                     fotografia de um filme de Paulo Rocha

escrevo-te esta carta para que a guardes
naquele bolso que não gaste as palavras
naquela bolsa de abertura secreta
naqueles  lugares magníficos  de afecto;
a mente que brilha, os lábios de sonho
os ombros de descanso, um silêncio bom.
 vou-te contar, começa assim:

a vigésima primeira, representa uma nova dezena,  em frente, a permanência
uma continuidade de planetas, os astros em movimento
as suas rotações,  as suas danças, inaudíveis, mas presentes.

o calor sobe sobre a calçada e junto à ponte. é um maio diferente.

lembro-me do barco naquele sítio, entre o silêncio das encostas
quando os remos permitiam que o barco serpenteasse o rio;
o remador, a sua barba malfeita, as suas marcas, os seus pensos, a ligadura branca.
o remador e a tua presença, em concerto, na música de uma água que corria.
refrescavas a lisura da pele, os dedos e os pés, gota a gota, como uma chuva grossa
em consistência, refrescando mesmo -

as águas do rio naquele dia eram  frias e simples, únicas
a paisagem não mudava na suave ondulação.
guardo a fotografia e olho-a sem vinte anos, antes, antes daquele, e depois daquele dia
quando ainda subíamos a margem e observávamos cada curva do sorriso
a duplicidade atrasada e natural, sem esforço, porque qualquer um que fosse, no início
o outro acompanhava e ainda ria mais, muito mais, apropriando-se daquele espaço
que crescia e ganhava a forma de uma metáfora
a mais bela, a mais perfeita, a mais inteligente
de um puzzle que completava
a partilha –

não estou triste, não é assim. quando se olha o passado
é um constructo, um tijolo e uma argamassa, um azulejo azul de memória 
quando o momento é intacto, fresco, descontraído, como o barco
os remos e o rio, o seu movimento nas costas das margens, a fluir
no seu jeito simples –

corri o risco, a experiência , remei bastante
e quando observo aquele ar tisnado do remador
no seu rodar lento, deixando avançar primeiro
para não desequilibrar o corpo  
para que no outro canto, sentado na tábua dura, eu mesmo
pudesse disparar, num click e em privado, a eternidade lisa da fotografia –

assim saiu da máquina Nikon
sem permitir ver a outra parte da minha alegria, o meu sorriso
e achei-te tão bonita, lembro-me, apeteceu-me dar um grito
que ecoasse e repetisse, de encosta em encosta
escoando alternado e em mistura;
aquele eco que só é conhecido
por quem habita os montes, por quem habita –

quando escrevo esta carta de olhos na fotografia
sinto a leveza de dias inesquecíveis, crescem-me os dedos
digo-te –

qual o barco, qual o rio, qual o dia, qual a cor da camisa
solta sobre os calções bege, sem marca, mas oferecidos
comprados naquela loja de Santa Catarina?
 não, não foi na Zara,
foi antes, um pouco mais acima, depois da R. Formosa, do lado esquerdo
já te lembras? 
sou eu sempre que guardo esta precisão de um pormenor
esta importância de um sinal, deum pequeno vírus de vida que cresce e me adoece
lentamente –

mas que me acompanha sem cair, sem cair, e sempre –

o papel das sebentas não era branco. não havia tanta celulose destruída.
escrevia, sim, escrevia
e gastava as Levis e as  Lois até ao fim, numa alternância azul
numa cor muito preta das pestanas, dos cabelos
não eram os dias do consumismo, a modernidade que exige  –


as casas tinham varandas, tinham janelas, estendia-se a roupa
o sabão tinha aquele odor de potassa e oleína, alguns de glicerina
e depois passava a roupa
por sobre um ferro apertado, por sobre um pano branco, e as gotas de água
borrifadas, antes de serem gás, antes de serem absolutamente quentes –

e ganhava alguns escudos; as minhas, as dos outros, as da família –

mas deixa, pois, emudeço, torno-me resiliente e quase adormeço
e não cumpro os mandamentos, o mandamento de te escrever
de te ver sorrir, de te colocar, nesta distância de falésia, um olhar mais terno
mais terno ainda, para que te sintas bem, para que tranquilizes, o medo do inverno
o medo de um dia o vento, o medo de um dia o frio –

 não quero que te apoquentes
nem que te vistas de espinhos; uma rosa alta e distante a que não se possa subir –

espero bem sabes, é esta a condição dos poetas, esperar, esperar as palavras
que caiem das estrelas, as palavras que chegam, as palavras que se inventam –

há uma certa melancolia, não é costume, foi a fotografia, vinte anos antes –

transformo-me agora, erguem-se de novo os cantos dos lábios, descansa
queria o teu ombro, o teu colo, as tuas mãos no meu cabelo-

hoje que guardo a fotografia, sorrio e visualizo o rio, a chegada ao cais
a corda grossa, molhada, antes de presa, a minha mão que te segura
e te ajuda a subir de pés descalços, as marcas nas tábuas
de pégadas intrínsecas, doces  –
e sorrio sabes, e quero que sorrias, que dês uma gargalhada
para que os peixes saibam –

sossega agora, coloco no envelope quadrado a fotografia
o rio todo, as vinhas por despontar, as carapuças das bolotas
ainda verdes e muito presas, as raízes dos olhos, das letras, dos poemas
humedeço a cola, escrevo uma data e uma história, e guardo –

é muito tarde, o relógio da sala não tem cuco, não toca, são duas horas.
aproximo-me de 900 palavras, e canso-te, estás cansada -

quero que adormeças
não te mexas
fecha os olhos, chamo os anjos e lembro-me.
a fotografia está fechada no envelope quadrado.
falamos uma outra vez, amanhã,depois, quem sabe
escrevo uma outra carta, mais clara. 
desculpa, descansa
chamo os anjos, não te mexas, chamo os anjos –

a fotografia –



josé ferreira






quinta-feira, 17 de maio de 2012






Já por aqui coloquei este post e muitos naturalmente já viram e partilharam, no entanto esta é a votação final, faltam dois dias, a letra é da Ana Luísa Amaral que me enviou o email e que agradeço que divulguem e votem, faltam dois dias vamos lá !

"Blanket Made of Blue, de Francisco Rua e Mariana Mello, com letra da Ana Luísa Amaral, a canção vencedora do Concurso Nacional Rio+20 poderá vencer o Concurso Mundial Rio+20 Global Youth Music Contest se conseguirmos mobilizar a população portuguesa para o voto.

Faltam apenas três dias para o encerramento da votação online.

Ouça a canção e vote até 18 de Maio:
http://www.global-rockstar.net/blanket-made-of-blue
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Muito obrigado!"

naquela casa habita


                                  imagem retirada da internet

naquela casa habita a princesa dos alpes,  as árvores e os pássaros,
rodeada de pinheiros de agulhas apertadas,
o tecido verde, a sua erva  numa tela de terra
por vezes um caminho, despida –

naquela casa habita o cinzento da distância
de um outro monte e de uma outra casa
e o rosa na inclinação da bússola –

se olhares o sul encontras o sol
 a sua luz na testa e a sua sombra nas costas, nocturna, a sua lua –

se olhares o sul, encontras a viagem dos raios que trazem o céu
esse mar de avesso, em cima, sem gotas de algumas nuvens  –

se olhares o sul encontras um outro mundo
e um outro tempo, na sua asa de andorinha
na sua possibilidade, como Dickinson
e habitas, a casa como um ninho,
e a primavera como um aroma e uma luz de flores, um jardim,
seja de magnólias, orquídeas, jasmins, ou mesmo de dálias e jacintos,
e a orquídea, a rainha das ilhas entre foguetes de fim de ano
levada e em levadas pelo odor de buganvílias –

naquela casa entre a relva de um verde salsa e o caminho habita a princesa dos alpes
habita o síncrono advento, a possibilidade de uma janela grande aberta num alpendre,
num luar quente, numa rede que oscila em gestos pequenos –

naquela casa habita a melodia dos violinos, um quarteto de som
 o eco que prolonga o braço e ergue uma varinha, a magia da madrinha
a humanidade das estátuas de Sofia, a fonte  de uma nascença de águas
o seu rumor contínuo, a transparência em fio
o seu linho invisível –

naquela casa habita o embalo da serra, a sua tranquilidade
o seu búzio sem ruídos –


josé ferreira


terça-feira, 15 de maio de 2012

esta carta que te escrevo ( XX )




escrevo-te esta carta para que a guardes
como um soneto de Camões ou uma poesia anónima e imprevista
uma interrogação, uma surpresa de quatro cantos, por debaixo da porta
como se o teu nome fosse Leonor e habitasses uma aldeia
 de flores nas árvores, de sinos calados e pássaros de fim de tarde
de fontes e de cântaros de barro.
vou-te contar, começa assim:

a temperatura sobe intelectualmente e sobre a pele.
completa-se um círculo, forma-se uma espiral que amplifica
e sente-se um cântico de mel –

as cidades vestem-se de paredes abandonadas e de outras de papel
de betão e de mármores, conforme os locais
de pedras de sal se junto do mar –

as cidades vestem-se de movimentos, que te rodeiam de ruídos
de ponteiros, de colarinhos brancos, de sedas, de sarjas, de gangas
de camisas soltas, de cabelos minuciosos, presos num laço -

as cidades vestem-se de ideias quando te sentas,  cruzas as pernas
e tomas o pequeno-almoço; uma torrada, um copo de sumo de laranja
e um guardanapo de papel onde secas os lábios, o castanho claro
de um copo de café com leite depois do click das migalhas
pela toalha, pelo joelho e pelo chão  –

deste lado do universo, na metade incompleta
um copo de leite branco por vezes basta, sem cereais nem pão
por vezes basta, depois da rádio,  smooth,  de notícias ou clássica
depois de um éter antes do néctar, antes do  negro do café –

deste lado, quando acordo, trago os olhos cobertos com a noite sem galápagos,
habitada, no teu corpo, no teu sonho, esse um espelho mágico que antecipo
nas muitas cartas que te escrevo -

já passou a febre do Domingo, escondeu-se o primeiro dia da semana
ainda dorme a madrugada. as persianas não tem espaços, não se ouvem os carros
a noite é plana, não sei se já o disse antes, mas não é notícia de jornal, as últimas
que falam da Gécia, das crises mediáticas, do Rock in Rio
e de um neurocientista nos jogos olímpicos -

acordo extenuado, devo ter subido cinquenta vezes o Evereste
para te trazer um pedaço de neve, para que ele se derreta
e seja breve. como prova de aromas e de claridade, como prova única e singular
e como prova cinquenta  vezes máxima –

acordo com os olhos empolados com as íris raiadas, uma luz ao fundo
e uma dor de fogo , uma dor de brasas.
acordo com os rins impressionados de gestos
de ginásticas, de braços e de um corpo que se percorre, lado a lado
e acordo guardando sempre palavras, aquelas que eram mais
as palavras sadias, de rubor, ainda gordas e ainda fortes  de uma outra carta –

sabes, faço-te uma promessa, uma promessa que nunca acabem , as palavras
na forma simbólica de uma eternidade, mesmo mudas nas pontas dos dedos
nas pontas dos lábios e dentro de ti para que ninguém veja –

sabes, e faço-te uma promessa, o cuidado com os teus ombros
e com a face esquerda do rosto quando a direita se apoia.
desculpa o meu corpo magro, as pontas dos meus ossos, esta curva redonda
este meu corpo de pêlos, este meu cabelo, pequeno e cortado
desculpa tudo o que te incomode e abre os teus braços, o teu diamante rosa
o tua cor de mulher, as tuas ondas perfeitas quando se esquecem os segundos -

dá-me o milésimo contínuo e depois um descanso e depois um sossego
a quietude do vento –

desculpa-me de novo.  depois destas palavras sinto a brisa e a leveza, depois
depois da febre, depois da promessa e da temperatura Celsius, quarenta –

continuaria pelas amarras distantes da noite, nadando
 nadando na proximidade, sempre nadando, e na esperança, nadando –
não temo as espumas, as ondas, a sua altura
mesmo de barca à vela ou de prancha –

e guardo continuamente, as outras palavras, as que ainda não escrevo
e guardo
para que ganhem luz, uma luz de pólos brancos, sem a separação do horizonte –

quando te escrevo esta carta para que a guardes
recebo a dádiva dos astros, dos mais longínquos e das nebulosas
da sua elipse e reenvio o seu pó mais tranquilo
a sua face mais íntima para que adormeças
devagarinho, e desculpa-me o diminuitivo
como uma criança num meio de um conto alisando as pálpebras
sentindo o sono, os preâmbulos do sonho –

 descansa, meu anjo, na vigésima, a vigésima ode da primavera
a vigésima que te adormece com o queixo no pescoço
e a mão como memória dos trevos, os de quatro folhas
na curva do umbigo. –

sleep, sleep well –