segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

uma vaga no mar de Renoir


Renoir "La vague" 1879

não se deve usar a trovoada da razão
na rotação colada de todos os dias.
impreterível a propriedade do acto
como surpresa
como rasgo imediato
pequena porta do sonho –

tudo aconteceu como um pano largo de um teatro
o levantar no silêncio de pontas de agulha
interrogações afiadas
perante os olhos e as vozes
o movimento dos corpos
os cenários vestidos de décor e depois modernos
vazios e cheios de simbólicos
na ausência
que apenas se sugestiona
e abre o ponto por detrás da cabeça
exactamente nesse lugar incerebral
impenetrável e invulgar
como um fragmento
que mostra a parte
o visível do azul
ondas que se aproximam devagar
e uma vaga no mar de Renoir –

tudo aconteceu no imprevisível lugar
nem cedo nem tarde
a hora exacta
escrita pelo desenho na areia
como um braço de árvore
uma oliveira de paz
que escreve e apaga
e apaga e escreve
os teus olhos a tua voz a tua pele
como linhas brancas
caminhando sem pressas
sem revoltas inconfortos ou vinganças
em direcção ao areal
o visível azul
e o branco
de uma vaga no mar de Renoir -

tudo aconteceu porque era primavera
e procurávamos o sol
talvez seja vulgar de dizer
mas um sol pode ter mais valor que um mundo
mesmo que cegue e enlouqueça
na possibilidade -

não houve na pacificidade das asas que sobrevoavam
as palavras fortes que desejavas
um Herberto Hélder de garras e fluxos intermináveis
incontidos como um poema imparável que nos leva atrás
presos por uma corda no pescoço
entre a falta de ar e uma tesoura de pontas afiadas
que desce certa e corta
mesmo antes de chocar com o muro as rochas o precipício
e um corpo desfeito por todos os lados entre sensações
e dúvidas terrenas ou superstições -

tudo aconteceu
porque não há ponteiros de tempo dentro dos nossos olhos
tudo aconteceu na forma de uma insígnia de liras
uma música de cordas na voz dos búzios
tudo aconteceu porque merecíamos e fomos capazes
sem palavras
entre os ombros e os abraços
na cor azul
de um mar indizível-


josé ferreira 23 Janeiro 2012

Maria Sousa

O processo de contar histórias é sempre lento
começa-se pelo início
e há quem diga que chegar ao fim é simples
uma frase é a melhor medida
para juntar os fragmentos
e se a noite a subir pela voz
é um método de fazer silêncios
e o coração é um órgão que
espreita pelos buracos da gramática
no fundo é porque têm um corpo como fronteira


Maria Sousa, Exercícios para endurecimento de lágrimas, Língua Morta, 2010.