domingo, 25 de março de 2012

Morte

Há na vida um tom ocre de lamento
Doce dor em vento, sopro e liberdade.
Face da metade de um outro equinócio,
Árida e surpresa, uma nuvem presa, na terra
em inércia, parada e muda, epitáfio surdo
Memória inquieta, paixão em colcheia
Rápida e segura, alterna a loucura com a centopeia.
Só a incerteza sorri à inconstância
De mudar de par a meio da dança.
Rodopio áspero, a vida em moinho
Mói a juventude em centeio fino;
Branco e sabedor, cor de luz e leve
Há no fim a luz da mais branca neve.

Dorme, descansa


Leighton Frederic "Flaming June"

Dorme, descansa, não abras os olhos –
na marginal pela tarde ruidosa não falámos. longe.
os passeios eram diferentes, apenas o mar
as suas ondas, o ar cinza e as palavras brancas –

sento-me nesta cadeira e deserto das letras omnívoras
estas notícias que anoto e guardo na memória
estes deslizes da corrupção dos políticos
que como as ondas levam segredos nos colarinhos
e guardam-nos como plâncton branco, escondido
a vã riqueza, apenas o útil não a essência
até que transparece o rosto, a cor do crime –

Dorme, descansa, não abras os olhos –
apenas moscas lá fora, aqui e aí o sossego das palavras
as folhas gastas dos livros, hoje os poemas, amanhã é domingo-
faço soar repetida uma música de vinil, antiga
roda no automatismo da tecnologia, gira sem curvas e sem linhas
mas não existe como forma , soa mais alto com o volume dos neurónios
e veste-se de pinturas de Dali, as cordas tangidas
as cores, o azul, os brancos, as musas, o intangível –

Dorme, descansa, não abras os olhos –
as minhas mãos estão paradas como pombas
naquela fotografia dos dançarinos, Spring
e não te tocam nem por um segundo.
os teus dedos são compridos, inclinam-se
os cabelos expandem o contorno das penas, respiram –

esticam-se e desnudam o pescoço como um fragmento de sonho
enquanto as minhas mãos, paradas de um voo, como pombas, duas –
e os dedos encolhidos no pulsar afirmativo de veias e sangue
interrogam a alma na recepção dos sentidos-

a música repete-se, contínua –

na marginal andavam pés de corrida, pés de bicicleta, pés nos ouvidos
e havia uma capela caiada, muito branca com raízes, de pedra
onde a água batia –
o meu braço recolhia o braço mais antigo, os passos lentos
o olhar já um pouco perdido, do meu berço, do meu início
num ar cinza, num mar verde, numa névoa sem frio
e alguém dizia o mar ali está manso e aqui mais forte
são diferentes –
sim, são diferentes: a circunstância, a rocha, a areia, lisa
a música a mesma, contínua –

Dorme, descansa, não abras os olhos –
sou apenas eu e as pombas; esta alma de linho, fios, plantas e caminhos
em ondas, sem ruído –

Dorme, descansa, não abras os olhos
amanhã é domingo –

josé ferreira 25 de Março de 2012