domingo, 29 de abril de 2012

a carta que te escrevo ( XI )




escrevo-te esta carta para que a guardes
muito apertada, debaixo da almofada
como um  segredo por um dia inteiro
e esquece-a um pouco
não toda, apenas algumas linhas, para ler de novo
pela manhã, pela manhã de um dia de domingo.
vou-te contar, começa assim:

apesar da luz que ilumina, não se acalmou o frio
um  frio que corre pelas mãos do vento a abrir-me o colarinho
a camisa às riscas quando chego a Santa Catarina –

sabes, foi uma surpresa. gosto da escada metálica
que primeiro mostra o céu e depois os azulejos
e a rua, uma rua cheia de gente, de muita gente.
hoje uma música celta, duas gaitas de foles  e tambores
tambores de pele e de gente que se anima –

levo os olhos bem abertos para enfeitarem o meu silêncio
para cobrirem de versos  o meu caminho,  anónimo e sozinho
e eis que surge uma cena de antologia e verde, verde como uma ervilha.
não te rias. que tem isso de surpresa de ser verde e ser ervilha?
bem sei que de início parece uma iluminura tola e sem sentido
mas ouve, ouve melhor, verde, verde como uma ervilha –
batiam, quer  dizer não batiam, que as horas não batem, aparecem rotativas
para nos mostrar a lua, uma luz branca que nos cinta
para nos mostrar estrelas brilhantes de platina
para nos mostrar as manhãs do Porto e as neblinas
para eliminar as sombras nas horas do meio-dia
para as tornar mais escondidas e menos  oblíquas –

mas voltando à relojoaria e a Santa Catarina
 sem batimentos era uma e trinta.
junto de uma venda de rua, um par de namorados
escondidos num fim de escada de porta fechada.
o rapaz de cabelo encaracolado, olhava de um e outro lado
a rapariga de costas voltadas, erguia na frente dos olhos uma casa de ervilhas
e uma a uma,  com um sorriso nos lábios
uma a uma, e comia subitamente, directamente da casa verde
uma a uma o verde das ervilhas.
ficava apenas a casa verde e os ombros muito encolhidos
e um sorriso, sim, um sorriso –

não te rias. é disparate bem sei, parece uma conversa de meninos
mas enternece-me, lembra-me o campo e não o  cimento
lembra-me os arbustos, lembra-me os caminhos de terra
lembra-me a frescura de um cogumelo de árvores nas montanhas do Minho
lembra-me muito e faz esquecer este vento
este vento frio que me cerca a gola
e que me entra pelos colarinhos –
a ervilha, assim uma a uma e eu a salivar como na psicologia experimental
a salivar o sabor de uma ervilha pelo palato, verde a rolar
a rolar pela língua –

não te rias. chega de disparate, bem sei, e afinal não tem muita piada
mas é um facto, aconteceu, era uma e trinta –

e como sempre a saudade trouxe-me os teus olhos
os teus olhos de princesa, deixa-me dizer assim
uma princesa de flor de lis como vi numa tela gigante
numa parede de Florença quando o calor era feito de mármores de Giotto
de esplanadas no meio de praças, de pontes com margens de casas
e de dias luminosos, lembro-me bem –

como me quero lembrar de todas as canções:  as de vozes roucas
as de cordas simples e as mais bem tecidas, de palavras
de palavras de pele pelas pratas do rio –

agora é como se visse bem os teus olhos, como se lhes pusesse as mãos em cima
os teus olhos de esconderijo –
como se lhes pusesse as mãos em cima para te fazer sorrir
e depois  com as agulhas dos dedos, tecer poemas, tecer poemas  bem devagarinho
mas com ritmo,  tecer poemas  em tecidos, belos tecidos
tecidos de flor de lis
para usares todos os dias –

e lembro-me de um quadro do realismo, um quadro de gôndola
um quadro de bancos vermelhos, dois bancos vermelhos, sem gente
junto de escadas, sem namorados, num espelho de águas
e recordo-me da fita preta nos chapéus de palha da madeira
e sonho conduzir o barco com uma t-shirt de riscas
a gôndola no deslizar suave por entre prédios altos
para que possas virar de todos os lados um pequeno ramo de violetas
ou de amores-perfeitos, ou de flores pequenas como miosótis
emolduradas pelos aroma de glicínias –

por vezes a chuva quando cai regular e certa, adormece sem que pese
e nunca sequer tinha pensado nas gôndolas como um rumorejar
que ao espalhar as sucessivas ondas até aos alicerces
pudesse adormecer e sossegar de forma tranquila
mas parece-me bem porque sinto, sinto o barco avançar
e sinto o sono e sinto um sorriso no rosto  -

hoje quero que adormeças numa gôndola de Veneza
ou nas pratas luminosas de um rio Arno de Florença
envolvida em tecidos de seda
envolvida de versos e poemas
num aconchego de dedos, de dedos que te desejam
a noite da lua e a noite das estrelas –

e que sonhes, sonhes muito e tanto, e tão intensamente
para que chovam madrugadas,  vestidas de verde
de forma tão intensa que sossegadamente
se abracem os dias –

os anjos, bem sabes, estão contigo
dorme bem,dorme muito, amanhã é domingo –

boa noite...