sábado, 26 de maio de 2012

Angelus Markus



ANGELUS MARKUS


Não sei se pela brutalidade da cidade já te cruzaste com Angelus Markus, de pernas grossas, de botas de aço. As biqueiras brilham quando caem os raios mais amarelos e cegam com frequência mulheres e homens de todas as idades.
Angelus Markus tem uma deficiência desapercebida dos mortais, a cabeça não pensa fora de casa. Não sei se te cruzaste com ele num crepúsculo ocasional com os olhos em brasa, de passo após  passo, mecânico e sempre na mesma distância, como um cronómetro poderia facilmente concluir, anotando precisamente que  o espaço  é proporcional ao tempo, seguindo cientificamente a lei de uma física uniforme, uma espécie de cyborg.
Nunca poderias encontrá-lo de t-shirt branca, ou às listas, mesmo que de farmácia ou supermercado, anda sempre com uma gabardine larga que se abre sem vento  e causa o pânico, o arrepio e a náusea, a pressa  de todos os que usam células, de ganharem  asas e atravessarem todos os sinais de sangue nos semáforos vermelhos, no imediato, para outro lado. Por vezes as crianças correm e provocam acidentes como se fugissem de uma discoteca incendiada, deixam os lollipops, os chocolates, cadernos e mesmo os lápis  e fogem com os cabelos levantados, por uma electricidade estática sem memória  e imperdoável .
Angelus Markus nunca vê ninguém, tem neurónios de água fora de casa, não pensa, só ouve ruídos, o marulhar de um mar de tempestades e nunca plano ou de azeite, como os gregos inventaram.
Angelus Markus escuta  as tábuas de naus partidas,  os mastros com dentes, inclinados,  e as velas de trapos, rasgadas como folhas de papel couché ou páginas de jornais genéricos de notícias vulgares, absolutamente fundamentais  na ignição das lareiras provisórias quando há um inferno nas chamas dos ecrãs das televisões regionais, nacionais e globais.
Se  construísses um círculo preciso com ferramentas de Da Vinci, com um compasso gigante, daqueles de sépia ou grafite, à roda do homem, daqueles que ficam para a posteridade, não poderias envolver nunca nessa íris  Angelus Markus. Nunca poderias violar aquele halo, aquele aura magnética de pólos sempre preparados para a projecção e nunca a atractividade. Possui um interruptor automático, mais com mais, negativo com negativo e um curto circuito de ruptura afiada com a dureza dos diamantes, a mais alta das escalas.
 Nunca poderias ver Angelus Markus a descer escadas, desequilibraria a engrenagem e o coração metálico. Os poucos que conseguiram chegar perto do seu perímetro mínimo de dois metros dizem que ouviram um pêndulo e lembram-se de Foucault, é possível que nunca pare.
Angelus Markus provavelmente nunca vai ser desvendado e há-de continuar a sair às cinco horas e trinta e quatro, da casa 25,  de um bairro de cinquenta casas sem nenhum habitante, para além de Angelus. Na entrada, tem um antigo marco de correio, dos que têm um ponteiro e horas paradas. Não consta que alguma vez tenha ali entrado alguma carta, e o último carteiro de que há memória vive numa montanha dos Alpes com uma doença estranha, e não fala.
As saídas ordinárias, pendulares e síncronas, diárias, de Angelus Markus demoram exactamente  43 minutos e sempre que se aproxima da porta do bairro, ela abre e range num grito audível a dois quilómetros de distância como um camião Tir em travagem antes de parar ou chocar, condicionado pelo raio de uma circunferência  com um centro na sua sala junto  da floreira de cristal d’Arques, que tem sempre a mesma rosa vermelha, sem água e absolutamente natural. As pétalas nunca caem.
Não sei se já foste projectado a mais de dois metros de distância por Angelus Markus, se alguma vez o encontraste mesmo que ao longe como os pássaros e poderia continuar a falar-te dele por toda uma eternidade, mas ele chegou mesmo agora  com as portas chiando nas rotações severas e ruidosas,  e  com um óleo dos silêncios. Já não interessa, porque quando entra em casa e se senta no sofá de pele coçada de carneiro, retira os olhos e põe-nos em cima da mesa, desloca o joelho, abre um fecho de mola e usa a tíbia e o perónio como bengala, e estende a mão para a rosa vermelha que fica hirta depois de estar 43 minutos inclinada.
Angelus Markus não usa facas nem diz mal de ninguém, ele nunca fala, não bebe nem cozinha massa, mas dentro de casa, apesar de sobrenatural,  pensa  e tem alma, ao contrário dos quarenta e três minutos frios e metálicos como um robot pela cidade.
 A curiosidade deste personagem, Angelus Markus, não é o estar dentro de casa e poder comover-se com as rosas vegetais ou com uma paisagem caliente da Toscânia num velho calendário de 1934, que não vê mas agora pensa, e sabe do seu lugar na prateleira setenta  e cinco há direita  de quem entra, pelo lado mais claro do subconsciente, um local muito húmido que ainda liberta adrenalinas. Memórias provavelmente muito antigas ou roubadas a alguém que foi projectado ontem ou hoje contra um a parede,  memórias que faz dele e que outros  têm .  Mas essas memórias não atraem ninguém, nem sequer as crianças de cabelos eriçados. A sua figura esvoaçante de gabardine e olhos de chama interessam a toda a gente, é um desafio de um acto social, é importante. Por isso é bom que o encontres num lugar público com os seus olhos falsos de brasas, ao longo da larga circunferência das calçadas,  junto  ao bairro deserto, para que sintas a emoção de um murro acre nas paredes do estômago  e  nos teus valores fundamentais, e isso é reportável, e isso é muito interessante  e isso é uma nódoa apreciável.
 Se no entretanto não o encontrares nunca, não estranhes nem deixes de tomar o café no local habitual, não deixes de comprar o plástico das headlines e não deixes de sorrir aos dentes brancos de todas as Stars. Quanto às outras, aquelas que pousam no ar na noite mais aveludada, quanto às outras quando ficarem menos cintilantes, quando numa noite sem memórias, uma noite cáustica, quando todas as estrelas por alguns momentos ficarem menos brancas e mais baças, quase apagadas,  saberás que Angelus Markus morreu e não foi enterrado. Só daí a duas semanas, meses ou anos se saberá.
Ou pelo contrário sem a falta de um azeite celular e com o clássico óleo de lubrificar, será imortal, e permanecerá para sempre num qualquer bairro desconhecido e no qual não mereces morar, porque há quem diga que o pêndulo inicia o movimento e sem atrito, não parará.

José Ferreira

P.S. Este texto e outros poemas que aqui vão aparecer nos próximos dias resultam de mais um encontro dos fazedores deste blog, com Ana Luísa Amaral, subordinado ao tema "azeite", e com um desafio suplementar de cada um tentar sair do seu próprio estilo e tentar surpreender os outros. Este texto foi a minha proposta