domingo, 7 de julho de 2013

escrevo-te (XXI) - sobre o mar

Amadeo Modigliani


escrevo-te sobre o mar no poema vinte um.
quero que o guardes junto de uma macieira vermelha
protegido num rolo de aguarela, enrolado na forma de papiro.
tem os cantos queimados como costumava fazer na mesma idade do poema
incinerando os  vazios do papel que se desprendiam num fumo que subia
e depois caíam exaustos, separados entre cinza e espírito
como se dividissem a alma
entre o eterno,  que colocava a moldura da forma
e o momento da aura,  de terminar a obra de arte, depois de soltar as palavras fugidias
nos recantos da praia, nas relvas dos jardins, na solidão das paredes insensíveis
e de uma luz eléctrica transformada na sensualidade de um teatro  de sombras
como se decorresse um filme à luz de lamparinas  –


se lhe chamo obra de arte não é um elogio, tenho a consciência dos limites.
houve dias e dias, horas e horas, numa existência morta.
casualidades e banalidades pelos interstícios de muitos anos perdidos.
sem resultados, sem linhas escritas -

os poemas são a obra de arte que significam sem a preocupação de medida.
uma efervescência, uma ebulição, um assobio, o lugar de um número ímpar;
serei sempre um desconhecido do tempo, um vagabundo da luz e da poesia –


para além do mar e desta cidade parada na foz de um rio
escrevo-te sobre a revolução  das glícinias
quando  lançam os braços doces nas noites propícias.
como uma luz âmbar na cor lilás do teu  sorriso, o teu sorriso
irrepreensível de sentido, natural, solto, em frente de um chá de camomila
depois de colocares os lábios num copo de vinho
após o desfazer dos brincos de cereja, primeiro de  par em par
e depois um a um,  caindo –

o mar está ali à minha frente, sei que o vês nitidamente
da esplanada de folhas brancas manuscritas, por detrás dos óculos escuros
com os olhos de brilho.
o mar persistente de ruído branco e sal infinito –

sei que o vês nitidamente enquanto recordo o teu baixar das pálpebras
os meus lábios aflitos
e as horas fugitivas como se fossem minutos e segundos pequeninos –

calo-me, deixo que as lágrimas caiam, e sim, são esses borrões de tinta.
não, não é um momento triste, porque na memória reside o vivido
o campo risonho de margaridas, as nuvens, o céu azul, o sol  e a chuva
a protecção de um bosque e uma casa escondida
de cortinas de renda e lenha acesa, na luz tremeluzente
como a das lamparinas –

dançaste a noite inteira, derrubaste cadeiras na coreografia
percorreste a sala iluminada como se fosse uma corrida
e depois paraste, abriste os braços e teu coração batia.
era a noite dos milagres,  a lua estava cheia e as estrelas protegiam –

calo-me, e dou lugar às ondas. caminho. a areia escorrega
a água esgota-se na clepsidra
os pés vestem-se de branco e as veias apertam.
calo-me e o mar avança, cobre-me de limos
adivinho-te na rocha mais distante como uma figura de mitologia
os cabelos reluzentes, a pele em contraluz, os raios procurando aberturas
chegando com as ondas e partindo num som imperceptível –

josé ferreira 7 julho 2013