Precisa de um berço o Menino
que está para nascer,
Precisa de um coração solícito
e acolhedor,
Vai revelar-se na grande Noite,
e transborda de Amor –
Natal, 2017
José Almeida da Silva
domingo, 24 de dezembro de 2017
quarta-feira, 20 de dezembro de 2017
"O MAR PARECE AZEITE” ATELIER DE POESIA COM ANA LUÍSA AMARAL
“A poesia começa quando um idiota olha para o mar e diz: «parece azeite»”.
O Atelier de poesia
conduzido pela poeta Ana Luísa Amaral, realizar-se-á nos dias 27 e 28 de janeiro de 2018, e terá a duração total de 10 horas: Sábado dia 27, das 10:00 ás 17:00, com intervalo para almoço, e Domingo dia 28 de Janeiro das 10:00 ás 14:00.
conduzido pela poeta Ana Luísa Amaral, realizar-se-á nos dias 27 e 28 de janeiro de 2018, e terá a duração total de 10 horas: Sábado dia 27, das 10:00 ás 17:00, com intervalo para almoço, e Domingo dia 28 de Janeiro das 10:00 ás 14:00.
terça-feira, 21 de março de 2017
Quando vier a Primavera
Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.
7-11-1915
Porque é dia de poesia, com carinho, para os companheiros poetas, um abraço do José Almeida da Silva
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.
7-11-1915
“Poemas Inconjuntos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).
- 87.
1ª publ. in “Poemas Inconjuntos”. In Athena, nº 5. Lisboa: Fev. 1925.
Porque é dia de poesia, com carinho, para os companheiros poetas, um abraço do José Almeida da Silva
quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017
A Invenção do dia claro (Excerto)
Caderno de Almada Negreiros
(Texto de Alamada Negreiros em português original)
Na montra estava um livro chamado «O lial conselheiro». Escrito antigamente por um Rei dos Portuguezes! Escrito de uma só maneira para todas as especies de seus vassalos! Bemdito homem que foi na verdade Rei! O Mestre que quere que eu seja Mestre! Eu acho que todos os livros deviam chamar-se assim: «O lial conselheiro»! Não achas, Mãe? O Mestre escreveu o que sabia--por isso ele foi Mestre. As palavras tornaram presentes como o Mestre fazia atenção. Estas palavras ficaram escritas por causa dos outros tambem. Os outros aprendiam a ler para chegarem a Mestres--era com esta intenção que se aprendia a ler antigamente. * * * * * Sonhei com um paíz onde todos chegavam a Mestres. Começava cada qual por fazer a caneta e o aparo com que se punha á escuta do universo; em seguida, fabricava desde a materia prima o papel onde ia assentando as confidencias que recebia directamente do universo; depois, descia até ao fundo dos rochedos por causa da tinta negra dos chócos; gravava letra por letra o tipo com que compunha as suas palavras; e arrancava da arvore a prensa onde apertava com segurança as descobertas para irem ter com os outros. Era assim que neste país todos chegavam a Mestres. Era assim que os Mestres iam escrevendo as frases que hão-de salvar a humanidade. * * * * * Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa--salvar a humanidade.
terça-feira, 7 de fevereiro de 2017
lady Orlando
Fotografia Rodney Smith
lady Orlando, quando uma porta se abre, abre-se um centro.
o contexto perde nitidez na descoberta de um interesse, um segredo, um
desígnio.
é humano, e o que é humano interessa.
os pássaros voam e não compreendem, e o mesmo acontece
a todos os animais teleologicamente impávidos pela sua
natureza.
o humano agita-se nesse vento e sublima –
será o poema que te faz atravessar fronteiras:
esse rebuliço de palavras escritas no seio
aprisionado de manchas antigas e linhas cruzadas
nascido no campo e dirigido pelas urbanidades
entre a revolta Otomana e o exagero ritual das embaixadas?
lady Orlando, a semana passada, precisamente à uma da tarde,
não havia árvores.
nem o pinhal alteado em direção à margem.
nem mesmo ervas sem geometria, rebeldes e propícias a um
equilíbrio de gotas de água.
corrias de forma precisa pela ruas aglomeradas de Londres,
em direção ao cabo Horn
impulsiva e fremente, levando na memória palavras, as
palavras exatas
que vencem distâncias e voam, voam sem asas –
procuravas, procuravas
uma outra porta, um balcão e a velocidade de um funcionário
na transformação técnica das palavras: a telegrafia da cidade.
a técnica é humana, e por ser humana interessa.
corrias, corrias
em tensão crescente, desproporcionada
entre o desejo e a negação da realidade –
lady Orlando, ninguém te descobre, alcança, domina
quando és farpa e singras
através de portas sólidas ou invisíveis
através de portas sólidas ou invisíveis
nessa decisão fática. uma inevitável natureza assim o determina
–
quando atravessas essa porta, lady Orlando, sentes o fogo
delirante.
a metamorfose aproxima-se, como se de novo Sasha e o navio
a necessidade indizível de mudança: os calções pelo vestido –
tantos eus, poéticos e indescritos, lady Orlando –
a porta, um centro, vozes, miríades de luzes
um uivo, submissão e a extensão de um domínio –
quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017
Clandestinidade
Todos os carcereiros na prisão
Do sono.
Dono
Dos sentimentos,
Do instinto
E da razão,
Sonho,
Penso
Imagino.
Faço o pino
Deitado.
E às vezes é-me dado
Neste desatino,
Por invisíveis mãos
A que nem sequer posso agradecer,
Um poema obscuro
Que de manhã, à luz do sol, procuro
Claramente entender
Miguel Torga Diário XIV (1987)
terça-feira, 31 de janeiro de 2017
diálogos e fotografia
Fotografia Rodney Smith
naquele dia houve um diálogo, lembras-te? com as margens e
com o rio:
sempre me avisaste do perigo dos caminhos líquidos
e sempre te perguntei: a solidez existe?
essa pergunta é difícil - disseste
cruzaste a perna, e imergiste numa auréola egoísta
um pensamento não visível pelo som e pela escrita
um silêncio incómodo. a pergunta caiu para dentro do rio.
lembro-me, mas não se vê no preto e branco da fotografia – digo
a fotografia apenas permite a fronteira rígida de captar
instantes
e gravar indícios, para que ressuscitem
se forem válidos e significativos –
sabes, a memória estala o verniz, cria traços finos, antique.
constrói os diálogos perdidos com as sensibilidades aflitas.
e nunca são autênticos, os diálogos e os espaços, as torres
e o rio.
o inconsciente faz
estalar o conflito: cada um constrói em si
as visitas da Lua, os meses e os anos, nesse fluir cíclico –
quando surgiu a fotografia não houve resposta
e sendo assim a pergunta persiste:
a solidez existe?
não me lembro da pergunta. não sei se a solidez existe,
nunca lhe descobri a matéria
nem a ideia que a domina. não a sinto e não a sentes e sendo
assim é difícil – dizes
talvez a única solidez que a filosofia admite seja a
permanência dos mitos
o eterno retorno de uma ilusão, como a memória que se revisita.
mas não é resposta.
uma divagação apenas – digo
e voltamos de novo à incerteza e aos caminhos líquidos
ao elogio das razões sensíveis –
provavelmente a solidez não existe e o mundo é líquido.
não é segura a longitude das torres quando as nuvens são
planas:
um teto branco sem azul na cor dos horizontes –
talvez exista uma ponte imaginária entre os teus pés e o céu
entre os meus pés e o céu. uma ponte permanente em movimento
contínuo.
uma ponte móvel de margem fixa
que em ti se constrói e em ti termina –
que em mim se constrói e em mim termina –
mas não é resposta, é apenas uma ponte de partida –
josé ferreira
terça-feira, 24 de janeiro de 2017
Para Atravesssar Contigo o Deserto do Mundo
Fotografia Rodney Smith
Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei
Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso
Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo
Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento
Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Livro Sexto' lido aqui
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei
Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso
Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo
Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento
Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Livro Sexto' lido aqui
sexta-feira, 20 de janeiro de 2017
Vénus e Marte

fotografia: Rodney Smith
josé ferreira
o barco deslizava pelo labirinto das árvores longilíneas.
dirigia-se ao céu. para lá das altitudes da camada de ozono
subiram os dióxidos e o metano tão perigoso: eram quentes as
águas.
quantos graus subiu na aorta o fluido veloz, nessa tarde sem
rumo?
lenta tarde, por vezes de silêncios na observação íntima dos
murmúrios.
não era apropriado o vestido escuro de múltiplas
transparências.
nem previsível o vento frenético na passagem do colibri
- asas invisíveis que criaram em traço fino e preciso, os dois
cabelos que levantaram
e ondearam, e aeraram, e pousaram, para que a silhueta
ficasse imóvel e perfeita
como nas aulas de desenho onde o modelo-estátua era o centro
objeto sem sentimento a circular, a circular, pelas
cirurgias do olhar –
mas não era esse o caso, o modelo era foco refletido num
único espelho
num bailado de dualidades.
uma Vénus em Marte, Marte em Vénus e Marte em Vénus
aprisionado, subjetivado.
não se fecharam os olhos, não se esconderam nas janelas da
mente a súbita luz
mesmo que um mero instante de dúvida, a hesitação
instantânea que oscilou o barco –
é incorreto pensar que existe uma democracia de emoções.
uma paz negociada, uma mediação recíproca perante a
circunstância de Cronos.
as emoções são como os terramotos, irritações das placas
para além do que vês.
as emoções são sabedoria.
impositivas para além do conhecimento que Rousseau ou
Diderot julgavam alcançar:
Lisboa ruiu não é uma culpa moral.
as emoções são rizomas sem centro nem periferias.
revelam-se, indizíveis, nessa liberdade de um não-lugar,
inapreensíveis na simbologia.
não existem mãos
poderosas ou exercícios públicos da razão
que as possam tornar dóceis e flexíveis: as mais puras, as
mais sensíveis
ou os gestos de loucura–
as emoções a flutuar nas águas pesadas esperando os remos
dos sentimentos –
os sentimentos chegam
sempre, vividos e lembrados, sem o som estridente de campainhas.
invisíveis, cobertos de sombra ou de uma memória perigosa
para os batimentos da aorta:
desenhavas silhuetas com os dedos ainda brilhantes de
grafite, e nada disse. tantos dias –
não conseguimos parar o tempo, somos sempre contemporâneos a
segurar instantes.
mas não devemos parar os barcos que deslizam por entre
árvores longilíneas.
e não devemos desvelar essas magias –
terça-feira, 17 de janeiro de 2017
Mar
Paul David Blond imagem daqui
Nunca conseguiu viver longe do mar.
A sua adolescência ficara cheia de dunas e de camarinhas, de falésias e águias,
de tempestades, de nomes de barcos e de peixes;
de aves e de luz coalhada à roda duma ilha.
Conhecera a ansiedade daqueles que, ao entardecer, olham meio cegos
a vastidão incendiada do oceano - e ninguém sabe se esperam alguma coisa,
alguma revelação, ou se estão ali sentados, apenas, para morrer.
Aprendera, também, que o mar, aquele mar - tarde ou cedo - só existiria dentro de si:
como uma dor afiada, como um vestígio qualquer a que nos agarramos
para suportar a melancólica travessia do mundo.
Depois, partiu para longe. E durante anos recordou, em sonhos,
o mar avistado pela última vez ao fundo das ruas. Procurou-o sempre
por onde andou, obsessivamente - mas nunca chegou a encontrá-lo.
Certa noite de bruma fria, em Antuérpia, no "Zanzi-Bar", julgou ouvir o mar
que perdera na voz dum jovem marinheiro grego. Mas não,
o marulho que aquela voz derramava, junto à sua orelha,
era de outro mar - fechado, calmo - propício aos amores inquietos
e à lassidão embriagante do sol e do vinho.
Anos mais tarde, em Delos, haveria de reconhecer a voz do marinheiro
no rebentar das ondas, em redor da ilha, como um eco:
"onde te vi despir regresso agora / para adormecer ou chorar"
e a noite caiu subitamente sobre ele, sobre a ilha e sobre o sonolento
coração das leoas em pedra.
Uma outra vez, perto de Gibraltar, uma mulher idosa quis ler-lhe
as linhas emaranhadas da mão. Já não se lembra o que lhe contou a mulher,
acerca da vida e dos rumos da paixão. Recorda somente
o que ela lhe disse ao separarem-se:
- Tens nos olhos a cor triste do mar que perdeste.
E passou bastante tempo antes que o homem voltasse ao seu país.
Quando o fez, foi ao encontro do mar. Largou a cidade e os amigos,
a casa, o conforto, a noite, o trabalho e tudo o mais. Viajou em direcção ao sul,
com a certeza de que jamais encontraria o mar perdido,
em lugar incerto, a meio da sua vida.
Sabia agora que nenhum mar existia fora do seu corpo,
e que tinha sido na perda irremediável de um mar que adquirira um outro onde,
por noites de inquietante insónia, podia encontrar-se consigo mesmo
e envelhecer sem sobressaltos; afastado da vã alegria dos homens
e da pobreza do mundo.
Ao chegar junto do mar sentou-se no cimo da duna, como dantes, e esperou.
Esperou que o mar guardado no fundo de si transbordasse,
e fosse ao encontro daquele que perdera e se espraiava agora à sua frente.
Ainda hoje permanece sentado, no mesmo lugar - esperando
o instante em que os dois mares se dissiparão um no outro, para sempre.
Está cansado da guerra com as palavras e do veneno dos homens,
tem os olhos queimados pelo sal. Os dedos adquiriram a rugosidade da areia
e dos rochedos; da sua boca solta-se um marulhar surdo, muito antigo,
que os dias e a solidão arrastam devagar para a luminosa euforia das águas.
al berto
o anjo mudo
assírio & alvim
2000 lido aqui
quinta-feira, 12 de janeiro de 2017
Gostava de Gostar de Gostar
imagem daqui
Gostava de gostar de gostar.
Um momento... Dá-me de ali um cigarro,
Do maço em cima da mesa de cabeceira.
Continua... Dizias
Que no desenvolvimento da metafísica
De Kant a Hegel
Alguma coisa se perdeu.
Concordo em absoluto.
Estive realmente a ouvir.
Nondum amabam et amare amabam (Santo Agostinho).
Que coisa curiosa estas associações de ideias!
Estou fatigado de estar pensando em sentir outra coisa.
Obrigado. Deixa-me acender. Continua. Hegel...
Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa lido aqui
Um momento... Dá-me de ali um cigarro,
Do maço em cima da mesa de cabeceira.
Continua... Dizias
Que no desenvolvimento da metafísica
De Kant a Hegel
Alguma coisa se perdeu.
Concordo em absoluto.
Estive realmente a ouvir.
Nondum amabam et amare amabam (Santo Agostinho).
Que coisa curiosa estas associações de ideias!
Estou fatigado de estar pensando em sentir outra coisa.
Obrigado. Deixa-me acender. Continua. Hegel...
Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa lido aqui
segunda-feira, 9 de janeiro de 2017
Carta à Minha Filha
Pormenor do quadro de Renoir imagem daqui
Lembras-te de dizer que a vida era uma fila?
Eras pequena e o cabelo mais claro,
mas os olhos iguais. Na metáfora dada
pela infância, perguntavas do espanto
da morte e do nascer, e de quem se seguia
e porque se seguia, ou da total ausência
de razão nessa cadeia em sonho de novelo.
Hoje, nesta noite tão quente rompendo-se
de junho, o teu cabelo claro mais escuro,
queria contar-te que a vida é também isso:
uma fila no espaço, uma fila no tempo
e que o teu tempo ao meu se seguirá.
Num estilo que gostava, esse de um homem
que um dia lembrou Goya numa carta a seus
filhos, queria dizer-te que a vida é também
isto: uma espingarda às vezes carregada
(como dizia uma mulher sozinha, mas grande
de jardim). Mostrar-te leite-creme, deixar-te
testamentos, falar-te de tigelas - é sempre
olhar-te amor. Mas é também desordenar-te à
vida, entrincheirar-te, e a mim, em fila descontínua
de mentiras, em carinho de verso.
E o que queria dizer-te é dos nexos da vida,
de quem a habita para além do ar.
E que o respeito inteiro e infinito
não precisa de vir depois do amor.
Nem antes. Que as filas só são úteis
como formas de olhar, maneiras de ordenar
o nosso espanto, mas que é possível pontos
paralelos, espelhos e não janelas.
E que tudo está bem e é bom: fila ou
novelo, duas cabeças tais num corpo só,
ou um dragão sem fogo, ou unicórnio
ameaçando chamas muito vivas.
Como o cabelo claro que tinhas nessa altura
se transformou castanho, ainda claro,
e a metáfora feita pela infância
se revelou tão boa no poema. Se revela
tão útil para falar da vida, essa que,
sem tigelas, intactas ou partidas, continua
a ser boa, mesmo que em dissonância de novelo.
Não sei que te dirão num futuro mais perto,
se quem assim habita os espaços das vidas
tem olhos de gigante ou chifres monstruosos.
Porque te amo, queria-te um antídoto
igual a elixir, que te fizesse grande
de repente, voando, como fada, sobre a fila.
Mas por te amar, não posso fazer isso,
e nesta noite quente a rasgar junho,
quero dizer-te da fila e do novelo
e das formas de amar todas diversas,
mas feitas de pequenos sons de espanto,
se o justo e o humano aí se abraçam.
A vida, minha filha, pode ser
de metáfora outra: uma língua de fogo;
uma camisa branca da cor do pesadelo.
Mas também esse bolbo que me deste,
e que agora floriu, passado um ano.
Porque houve terra, alguma água leve,
e uma varanda a libertar-lhe os passos.
Ana Luísa Amaral, in 'Imagias (Um pouco só de Goya: Carta a minha Filha)' lido aqui
Eras pequena e o cabelo mais claro,
mas os olhos iguais. Na metáfora dada
pela infância, perguntavas do espanto
da morte e do nascer, e de quem se seguia
e porque se seguia, ou da total ausência
de razão nessa cadeia em sonho de novelo.
Hoje, nesta noite tão quente rompendo-se
de junho, o teu cabelo claro mais escuro,
queria contar-te que a vida é também isso:
uma fila no espaço, uma fila no tempo
e que o teu tempo ao meu se seguirá.
Num estilo que gostava, esse de um homem
que um dia lembrou Goya numa carta a seus
filhos, queria dizer-te que a vida é também
isto: uma espingarda às vezes carregada
(como dizia uma mulher sozinha, mas grande
de jardim). Mostrar-te leite-creme, deixar-te
testamentos, falar-te de tigelas - é sempre
olhar-te amor. Mas é também desordenar-te à
vida, entrincheirar-te, e a mim, em fila descontínua
de mentiras, em carinho de verso.
E o que queria dizer-te é dos nexos da vida,
de quem a habita para além do ar.
E que o respeito inteiro e infinito
não precisa de vir depois do amor.
Nem antes. Que as filas só são úteis
como formas de olhar, maneiras de ordenar
o nosso espanto, mas que é possível pontos
paralelos, espelhos e não janelas.
E que tudo está bem e é bom: fila ou
novelo, duas cabeças tais num corpo só,
ou um dragão sem fogo, ou unicórnio
ameaçando chamas muito vivas.
Como o cabelo claro que tinhas nessa altura
se transformou castanho, ainda claro,
e a metáfora feita pela infância
se revelou tão boa no poema. Se revela
tão útil para falar da vida, essa que,
sem tigelas, intactas ou partidas, continua
a ser boa, mesmo que em dissonância de novelo.
Não sei que te dirão num futuro mais perto,
se quem assim habita os espaços das vidas
tem olhos de gigante ou chifres monstruosos.
Porque te amo, queria-te um antídoto
igual a elixir, que te fizesse grande
de repente, voando, como fada, sobre a fila.
Mas por te amar, não posso fazer isso,
e nesta noite quente a rasgar junho,
quero dizer-te da fila e do novelo
e das formas de amar todas diversas,
mas feitas de pequenos sons de espanto,
se o justo e o humano aí se abraçam.
A vida, minha filha, pode ser
de metáfora outra: uma língua de fogo;
uma camisa branca da cor do pesadelo.
Mas também esse bolbo que me deste,
e que agora floriu, passado um ano.
Porque houve terra, alguma água leve,
e uma varanda a libertar-lhe os passos.
Ana Luísa Amaral, in 'Imagias (Um pouco só de Goya: Carta a minha Filha)' lido aqui
sexta-feira, 6 de janeiro de 2017
A faca não corta o fogo
imagem daqui
li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
¿e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a
paixão e eu me perdesse nela,
a paixão grega
Herberto Helder: A faca não corta o fogo lido aqui
li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
¿e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a
paixão e eu me perdesse nela,
a paixão grega
Herberto Helder: A faca não corta o fogo lido aqui
terça-feira, 3 de janeiro de 2017
a cidade e as narativas
imagem daqui
nas cidades suspensas os edifícios precisam de ser substituídos
por raízes.
da física estática para a dinâmica de células fluidas.
é uma questão de oxigénio quando se procura as asas das
borboletas
porque são únicas e sem indício
vestidas da transparência natural de existirem:
sem o humano e a
filosofia dos sentidos –
é a surpresa que importa e não a rotina. o que sempre acontece é previsível.
como a visita da lua ou a luz excedente do astro que se
estende
sem a seta e sem destino, sem o sensível e o sibilino –
o mesmo acontece quando o meu ombro e o teu ombro existem, e
é física.
sem o reencontro são desperdício: uma redundância de
silêncios
na campânula dos ouvidos –
é apenas segunda-feira e sucede de novo o ano e a cronologia:
semanas e meses, a geometria dos números, como promessa, sem simbologia.
não desvelam o devir, a escrita dos interstícios
e só isso importa enquanto o pêndulo oscila
pela diferença e pelos navios
pelo invisível: o significativo sem o concreto dos cimentos
e das tecnologias –
os edifícios são lugares sem autonomia, destituídos de artérias e veias
não circulam nem imaginam. apesar da génese comum na
arquitetura das avenidas
são diferentes as rugas e os signos: na vértebra quatro a contar de
cima, o sinal
na pedra cinco, à direita da segunda janela, os pós cinzentos
que mudam a cor das borboletas
para que sobrevivam -
as cidades são instrumentos e estão suspensas, porque nunca
é delas a narrativa
são objeto, são construídas –
quando caminhas, quando escolhes um lenço de seda ou uma
manta de ovelha
um sapato alto ou o andar próximo das sabrinas, és movimento
–
a singularidade crítica que origina o poema, permanente ou
efémera
nos olhos que estão e são, ou são e não estão, naquele
fragmento imprevisível.
passando, passando, em passando, pelos trajetos da cidade e
pelos milhares de olhos
feitos edifícios e pelas ruas que os alinham, que os tornam
altos e os destroem
na sombra das almas que os significam. que os tornam
necessários e representativos
suspensos, sem raízes, na sede do segredo
do segredo e das narrativas –
josé ferreira
josé ferreira
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