terça-feira, 31 de janeiro de 2017

diálogos e fotografia



Fotografia Rodney Smith

                                             
naquele dia houve um diálogo, lembras-te? com as margens e com o rio:
sempre me avisaste do perigo dos caminhos líquidos
e sempre te perguntei: a solidez existe?

essa pergunta é difícil - disseste
cruzaste a perna, e imergiste numa auréola egoísta
um pensamento não visível pelo som e pela escrita
um silêncio incómodo. a pergunta caiu para dentro do rio. 

lembro-me, mas não se vê no preto e branco da fotografia – digo

a fotografia apenas permite a fronteira rígida de captar instantes
e gravar indícios, para que ressuscitem
se forem válidos e significativos –

sabes, a memória estala o verniz, cria traços finos, antique.
constrói os diálogos perdidos com as sensibilidades aflitas.
e nunca são autênticos, os diálogos e os espaços, as torres e o rio.
o inconsciente faz estalar o conflito: cada um constrói em si
as visitas da Lua, os meses e os anos, nesse fluir cíclico –

quando surgiu a fotografia não houve resposta
e sendo assim a pergunta persiste:
a solidez existe?

não me lembro da pergunta. não sei se a solidez existe, nunca lhe descobri a matéria
nem a ideia que a domina. não a sinto e não a sentes e sendo assim é difícil – dizes

talvez a única solidez que a filosofia admite seja a permanência dos mitos
o eterno retorno de uma ilusão, como a memória que se revisita. mas não é resposta.
uma divagação apenas – digo

e voltamos de novo à incerteza e aos caminhos líquidos
ao elogio das razões sensíveis –

provavelmente a solidez não existe e o mundo é líquido.
não é segura a longitude das torres quando as nuvens são planas:
um teto branco sem azul na cor dos horizontes –

talvez exista uma ponte imaginária entre os teus pés e o céu
entre os meus pés e o céu. uma ponte permanente em movimento contínuo.
uma ponte móvel de margem fixa
que em ti se constrói e em ti termina –

que em mim se constrói e em mim termina –

mas não é resposta, é apenas uma ponte de partida –

josé ferreira 




quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Gostava de Gostar de Gostar

imagem daqui

                    

Gostava de gostar de gostar.
Um momento... Dá-me de ali um cigarro,
Do maço em cima da mesa de cabeceira.
Continua... Dizias
Que no desenvolvimento da metafísica
De Kant a Hegel
Alguma coisa se perdeu.
Concordo em absoluto.
Estive realmente a ouvir.
Nondum amabam et amare amabam (Santo Agostinho).
Que coisa curiosa estas associações de ideias!
Estou fatigado de estar pensando em sentir outra coisa.
Obrigado. Deixa-me acender. Continua. Hegel...

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa lido aqui

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Carta à Minha Filha

Pormenor do quadro de Renoir imagem daqui


Lembras-te de dizer que a vida era uma fila? 
Eras pequena e o cabelo mais claro, 
mas os olhos iguais. Na metáfora dada 
pela infância, perguntavas do espanto 
da morte e do nascer, e de quem se seguia 
e porque se seguia, ou da total ausência 
de razão nessa cadeia em sonho de novelo. 

Hoje, nesta noite tão quente rompendo-se 
de junho, o teu cabelo claro mais escuro, 
queria contar-te que a vida é também isso: 
uma fila no espaço, uma fila no tempo 
e que o teu tempo ao meu se seguirá. 

Num estilo que gostava, esse de um homem 
que um dia lembrou Goya numa carta a seus 
filhos, queria dizer-te que a vida é também 
isto: uma espingarda às vezes carregada 
(como dizia uma mulher sozinha, mas grande 
de jardim). Mostrar-te leite-creme, deixar-te 
testamentos, falar-te de tigelas - é sempre 
olhar-te amor. Mas é também desordenar-te à 
vida, entrincheirar-te, e a mim, em fila descontínua 
de mentiras, em carinho de verso. 

E o que queria dizer-te é dos nexos da vida, 
de quem a habita para além do ar. 
E que o respeito inteiro e infinito 
não precisa de vir depois do amor. 
Nem antes. Que as filas só são úteis 
como formas de olhar, maneiras de ordenar 
o nosso espanto, mas que é possível pontos 
paralelos, espelhos e não janelas. 

E que tudo está bem e é bom: fila ou 
novelo, duas cabeças tais num corpo só, 
ou um dragão sem fogo, ou unicórnio 
ameaçando chamas muito vivas. 
Como o cabelo claro que tinhas nessa altura 
se transformou castanho, ainda claro, 
e a metáfora feita pela infância 
se revelou tão boa no poema. Se revela 
tão útil para falar da vida, essa que, 
sem tigelas, intactas ou partidas, continua 
a ser boa, mesmo que em dissonância de novelo. 

Não sei que te dirão num futuro mais perto, 
se quem assim habita os espaços das vidas 
tem olhos de gigante ou chifres monstruosos. 
Porque te amo, queria-te um antídoto 
igual a elixir, que te fizesse grande 
de repente, voando, como fada, sobre a fila. 
Mas por te amar, não posso fazer isso, 
e nesta noite quente a rasgar junho, 
quero dizer-te da fila e do novelo 
e das formas de amar todas diversas, 
mas feitas de pequenos sons de espanto, 
se o justo e o humano aí se abraçam. 

A vida, minha filha, pode ser 
de metáfora outra: uma língua de fogo; 
uma camisa branca da cor do pesadelo. 
Mas também esse bolbo que me deste, 
e que agora floriu, passado um ano. 
Porque houve terra, alguma água leve, 
e uma varanda a libertar-lhe os passos. 

Ana Luísa Amaral, in 'Imagias (Um pouco só de Goya: Carta a minha Filha)' lido aqui

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

A faca não corta o fogo

                        imagem daqui

li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
¿e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a 

paixão e eu me perdesse nela,
a paixão grega


Herberto Helder: A faca não corta o fogo lido aqui